Correio braziliense, n. 19383, 20/06/2016. Artigos, p. 9

SILVESTRE GORGULHO - Mais respeito a Oscar Niemeyer

Oscar Niemeyer, todos sabem, não é um arquiteto qualquer. Depois de sua morte, em dezembro de 2012, Niemeyer vem sofrendo uma série de questionamentos que não condizem com o respeito que devemos ter pela sua memória. Convivi, acompanhei e conheço todos os trabalhos de Oscar Niemeyer. Não posso aceitar a afirmação de que ele tenha recebido R$ 653 mil por projetos que nunca saíram do papel.

O que se entende por projeto que nunca saiu do papel? Um projeto arquitetônico feito por Oscar Niemeyer, com o trabalho básico também concluído, ou seja, calculado e devidamente pago, é um projeto que nunca saiu do papel ou é um projeto que ficou no papel? São coisas totalmente diferentes.

Se o projeto está pronto para ser licitado e a construção iniciada, a meu ver, é um projeto que saiu, sim, do papel. Está pronto para ser implementado. Mais ainda: os dois projetos a que se refere a matéria do Correio Braziliense de 15/junho, terça-feira, são importantíssimos para Brasília.

Um deles – a Praça do Povo – coloca ponto final na Esplanada dos Ministérios. É justamente o Complexo Cultural Norte, no terreno abandonado ao lado do Teatro Nacional, de frente para o Complexo Cultural Sul, onde estão  o Museu Nacional de Brasília e a Biblioteca Nacional. Será que Brasília aceitaria que outro arquiteto concluísse a Esplanada dos Ministérios, projetando algo para o último lote livre do Eixo Monumental, estando Oscar Niemeyer ainda vivo?

Vou além na minha reflexão. E a faço em respeito e em memória a um arquiteto reverenciado no mundo inteiro e referência da cultura brasileira. Niemeyer foi um servidor público que segurou com eficiência e dignidade cada passo da construção de Brasília. Talvez o mais importante, talvez não. Sim, é muito difícil dizer quem foi o número 1 na construção de Brasília.

JK cumpriu sua promessa e foi o cabeça do projeto. Lucio Costa foi o inventor genial, com méritos e glórias. Israel Pinheiro, o trator que pegou o touro à unha. E Oscar Niemeyer foi o alicerce. Foi a força e a sinergia desde o primeiro momento. Alicerce com justiça e mérito. Explico porquê:1) primeiro porque Oscar recusou aceitar o convite de JK para ele próprio fazer o projeto do Plano Piloto. Foi o próprio Oscar que exigiu a convocação de um concurso nacional .2) segundo, pela defesa contundente que Niemeyer fez do projeto de Lucio Costa.

A proposta de Lucio corria risco. Eram 26 projetos apresentados no concurso. Foram selecionados dez. O Plano Piloto de Lucio Costa corria risco “porque era uma ideia e não um projeto” no voto CONTRA do arquiteto Paulo Antunes Ribeiro, representante do IAB-Instituto de Arquitetos do Brasil, o presidente da entidade, Ary Garcia Roza, dava total apoio a seu delegado. Houve impasse, até mesmo porque o presidente da Comissão do Concurso, Israel Pinheiro, nem tinha direito a voto.

Baseado nas informações do urbanista e consultor inglês William Holford e nas suas próprias convicções, Oscar Niemeyer foi quem defendeu o projeto de Lucio Costa “porque os outros não tinham inventividade”. Segundo o inglês Holford, considerado o maior urbanista da época, “uma ideia que não se possa transmitir não tem nenhum valor. Mas uma ideia que seja capaz de provocar uma cadeia de ideias subsequentes é a coisa mais valiosa da civilização”.

Nos dias de hoje — talvez, quem sabe? —, o Ministério Público teria embargado o concurso. A verdade é que não fosse a força da personalidade de JK e o esforço empreendido por Oscar Niemeyer, naqueles exatos 5 anos da grande arrancada do desenvolvimento nacional, Brasília jamais tivesse sido construída. Sim, Brasília continuaria sendo um belíssimo sonho constitucional. Imagina, hoje, os presidentes Lula, Dilma ou Michel Temer tentando construir Brasília. Não é nem o caso das ações do Ministério Público. Com certeza nenhum presidente hoje teria licença ambiental nem para fazer o Catetinho. É muito triste ver esses nossos heróis do passado serem esculachados, denunciados, menosprezados e até condenados sem que eles estejam presentes para se defenderem.

Quanto ao Ceilambódromo, tenho que explicar também. É uma obra sonhada por Brasília e seus primeiros passos nasceram no governo Joaquim Roriz. Não havia projeto. No governo José Roberto Arruda, em 2007, houve uma reivindicação das Escolas de Samba de Brasília e da comunidade de Ceilândia. A cada carnaval eram gastos R$ 4 milhões ou R$ 5 milhões para fazer e desmanchar o Ceilambódromo. Assim, à semelhança do Rio de Janeiro e São Paulo, o GDF partiu para construir um complexo cultural, onde pudesse fazer, além do Carnaval, outras festas populares: shows, cursos, oficinas de arte, forrós, São João e apresentações diversas, com a devida praça de alimentação.

O lugar escolhido foi justamente na confluência entre Ceilândia, Taguatinga e Samambaia, onde vivem 60% da população do Distrito Federal. Considero esse projeto de Oscar Niemeyer uma evolução do tradicional Sambódromo, usado em apenas três dias do ano. O Ceilambódromo é um complexo que pode ser utilizado o ano inteiro, cobrindo grandes carências de espaços culturais nas cidades satélites.

Oscar deixou outro projeto pronto para ser construído e que foi aperfeiçoado depois, devido às novas tecnologias e necessidades. Concebido em 1985, Oscar deixou tudo pronto para a licitação e construção da Ponte do Lago Norte. Ninguém fala sobre ela. O GDF pediu, ele projetou e o governo pagou. Saiu do papel e ficou na burocracia, também uma obra necessária.

Os grandes homens sempre enfrentaram uma boa polêmica. Ela também ajuda. Mas o que não vale é desrespeito, desfaçatez e provocação. Estou com o arquiteto Carlos Magalhães da Silveira: “O que estão fazendo com a memória de Oscar Niemeyer é mais do que um desrespeito, é uma tremenda sacanagem com seu nome e sua história”. A verdade é que Oscar Niemeyer só trabalhava com calculistas da sua extrema confiança porque sua arquitetura era complexa, especial e tinha um diálogo permanente entre a concepção do projeto e o andamento dos cálculos. Por quê? Justamente para que o mestre das curvas pudesse ousar nos vãos livres, nos balanços, nas formas mais arrojadas e nunca testadas antes. Oscar Niemeyer deixou sua História.

 

 

SILVESTRE GORGULHO

Ex-secretário de Cultura