Correio braziliense, n. 19392, 29/06/2016. Política, p. 2

OSTENTAÇÃO COM DINHEIRO PÚBLICO

CRISE NA REPÚBLICA » Polícia Federal prende 14 pessoas em São Paulo, no Rio e no DF por fraudes na utilização da Lei Rouanet. Verbas destinadas ao incentivo da cultura eram desviadas para shows corporativos, livros institucionais e até casamentos
Por: Ivan Iunes

Ivan Iunes

 

 

Ao menos R$ 180 milhões que deveriam ser destinados ao incentivo à cultura no país serviram para irrigar ações internas de empresas com artistas famosos, eventos corporativos, livros institucionais e até festas de casamento. As irregularidades foram detectadas pela Operação Boca Livre da Polícia Federal, da Procuradoria-Geral da República e do Ministério da Transparência. Os recursos públicos foram desviados por meio da Lei Rouanet em ao menos 250 contratos. Ontem, os envolvidos nas irregularidades foram alvo de 51 mandados, sendo 14 de prisão temporária e 37 de busca e apreensão em São Paulo, no Rio de Janeiro e no Distrito Federal. Policiais também recolheram documentos no Ministério da Cultura.

As investigações sobre a aplicação de recursos da Lei Rouanet tiveram início em 2014 a partir de um relatório da Controladoria-Geral da União (CGU). Segundo a PF, o grupo criminoso atua há cerca de 15 anos. Entre as irregularidades detectadas estão superfaturamento; duplicação de projetos; utilização de terceiros para execução de projetos e desvios de verba pública em benefício do próprio incentivador, entre outras.

“Basicamente, um grupo investigado apresentava projetos no Ministério da Cultura para captação de recursos junto à iniciativa privada”, relatou o delegado Rodrigo de Campos Costa, da Delegacia Regional da PF de Combate e Investigação contra o Crime Organizado. “Uma vez deferido o projeto, feito o trâmite burocrático, o grupo procurava as empresas, mas com a obrigação de promover eventos relacionados à cultura. Na verdade, o objetivo da lei não foi atendido, muito menos atingido”, afirmou.

Foram alvos de buscas o Grupo Bellini Cultural, apontado como o principal operador do esquema, e as empresas Scania, KPMG, Roldão, Intermédica, Laboratório Cristalia, Lojas Cem, Cecil e Nycomed Produtos Farmacêuticos, além do escritório de advocacia Demarest. Somente o Bellini teria captado cerca de R$ 80 milhões via Lei Rouanet. Há cerca de dois meses, o casamento de Felipe Amorim — filho de Antonio Carlos Bellini, dono do grupo — e de Caroline Morais, promovido em um clube de luxo na praia de Jurerê Internacional, em Florianópolis, recebeu incentivos fiscais com recursos públicos.

Vídeos publicados nas redes sociais mostram a pujança da festa, que reuniu centenas de convidados e teve show pirotécnico e a apresentação do cantor sertanejo Léo Rodriguez, do hit Bara, Bará, Bere, Berê. Antonio Carlos Bellini e a mulher, além do noivo, foram presos em São Paulo e tiveram uma BMW apreendida. “O casamento desse senhor, pago com a Lei Rouanet, foi em um hotel cinco estrelas em Florianópolis com direito a vídeo gravado. Nós achamos que tivessem sido contratados modelos para fazer o vídeo. Eram os convidados mesmo, champanhe sendo aberto e isso com a Lei Rouanet”, declarou o ministro da Justiça, Alexandre de Moraes. A PF também prendeu o produtor cultural Fábio Ralston.

De acordo com a Polícia Federal, o esquema contava com falhas na fiscalização do Ministério da Cultura. “A investigação mostrou que eles não foram fiscalizados. Vamos determinar a razão nessa segunda fase do inquérito, a partir da análise do material apreendido e dos depoimentos”, disse o delegado Rodrigo de Campos Costa.

 

Outro lado

A maior parte das empresas investigadas alegou em nota não ser objeto da investigação pela Operação Boca Livre. Os mandados teriam sido cumpridos para recolhimento de informações relativas às empresas de marketing investigadas, com quem tiveram contratos firmados no passado. “O escritório enfatiza que não cometeu qualquer irregularidade, e informa que colaborou e continuará a colaborar com a investigação”, afirmou o escritório Demarest Advogados.

A empresa de auditoria KPMG declarou que “certa de que não cometeu qualquer ato ilícito, está e continuará a contribuir com as autoridades de maneira transparente para o fornecimento das informações necessárias.” Em nota, a Scania informa que “está colaborando integralmente com a investigação e está à disposição das autoridades”.

Segundo a força-tarefa da Operação Boca Livre, não há indícios de que os artistas envolvidos nos contratos fraudulentos tinham ciência das irregularidades. Os investigados devem responder pelos crimes de formação de organização criminosa, peculato, estelionato, crime contra a ordem tributária e falsidade ideológica.

 

Para saber mais

Incentivo na berlinda

A Lei Rouanet (8.313/1991), uma referência ao Secretário de Cultura, Sérgio Paulo Rouanet, criador da lei, foi sancionada em 1991, pelo então presidente, Fernando Collor de Melo. Instituiu o Programa Nacional de Apoio à Cultura (Pronac) como um mecanismo de incentivo à produção cultural nacional. Esse incentivo se dá por meio da captação de recursos por isenção fiscal. Pessoas físicas ou jurídicas têm a opção de destinar parcelas de impostos para projetos culturais como patrocínio ou doação. Desta forma, a população tem a opção de escolher o destino de seus impostos e a produção artística é estimulada. Os produtos ou serviços resultantes devem ser, obrigatoriamente, de exibição e circulação pública. Pessoas físicas e jurídicas podem apresentar uma proposta cultural que será submetida à análise no Ministério da Cultura. Em 25 anos de vigência da lei, mais de 100 mil projetos foram aprovados e 47 mil conseguiram a captação de recursos. O investimento é de quase R$ 15 bilhões, de acordo com o Sistema de Apoio às Leis de Incentivo à Cultura (Salic).