Valor econômico, v. 17, n. 4069, 15/08/2016. Brasil, p. A2

Em cinco anos, dívida da União cresce em ritmo mais forte que a dos Estados

Por: Marta Watanabe

 

A dívida dos Estados cresceu em ritmo maior que as receitas nos últimos cinco anos, mas a da União cresceu em proporção maior. Levantamento do economista José Roberto Afonso mostra que, entre 2010 e 2015, a dívida consolidada líquida da União avançou 4,1% reais na média anual enquanto a receita corrente líquida cresceu 0,6%. No mesmo período, nos 26 Estados mais o Distrito Federal, a dívida aumentou em 3,8% reais ao ano e a receita cresceu 2,8%.

O comportamento da dívida e da receita no governo federal nos cinco anos encerrados em 2015 comportou-se de forma inversa ao registrado nos dez anos anteriores. De 2001 a 2010, a dívida da União cresceu 0,6% reais ao ano enquanto a receita se expandiu 5,2%. Em igual período, a dívida dos Estados aumentou em 1,4% ao ano enquanto a receita subiu 5,8%.

Levando em conta todo o período de 15 anos - 2001 a 2015 - a dívida dos Estados cresceu 1,9% e a receita avançou 4,4%. Em igual período, a dívida da União subiu 2,2% e as receitas, 3%. Sempre anualmente, em termos reais. Se a dívida e a receita dos Estados tivessem evoluído da mesma forma que as contas da União no período entre 2000 e 2015, a dívida total dos Estados no fim do ano passado somaria R$ 702 bilhões.

Ou seja, a dívida total dos governos seria R$ 71 bilhões maior enquanto a receita total seria de R$ 502 bilhões, ou R$ 28 bilhões menor. A relação média entre dívida e receita dos Estados ao fim de 2015 seria de 1,4 contra os 1,19 efetivamente realizados. Os cálculos são de Afonso e da economista Vilma Pinto, pesquisadores do Instituto Brasileiro de Economia (Ibre-FGV). As comparações levam consideração, em todos os casos, a dívida consolidada líquida (DCL) e a receita corrente líquida (RCL).

A Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) limita o endividamento - relação entre DCL e RCL - dos Estados a 200% da receita corrente líquida. Com o efeito da crise econômica sobre a receita dos Estados, dois governos fecharam o ano passado perto do teto: Rio, com 197,8%, e Minas Gerais, com 198,7%. Um Estado, o Rio Grande do Sul, estourou o limite, com 227,2%. Afonso destaca que esses Estados teriam terminado o ano mais endividados ainda, caso o comportamento de dívida e receita tivesse seguido o padrão da União.

Desde a edição da LRF, se o governo do Rio tivesse acompanhado o resultado da União, teria chegado ao fim de 2015 com endividamento de 231,8%. A conta traz efeito semelhante para Minas e Rio Grande do Sul que teriam uma diferença da DCL/RCL de 34,2 e 39,1 pontos percentuais a mais, respectivamente, calcula o Afonso, que também é professor do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP).

Em 14 das 27 unidades federativas, avalia Afonso, a diferença é maior do que 10 pontos percentuais. Em 5 delas, a diferença chega a ser maior do que 20 pontos: São Paulo (28,9), Alagoas (29,2), Rio (34), Minas Gerais (34,2) e Rio Grande do Sul (39,1).

"Se o Rio está ruim hoje, poderia estar muito pior, caso a sucessão de governos no pós-LRF tivesse repetido passo a passo o feito pelo governo federal no mesmo período", afirma Afonso. "Ou seja, em que pese toda crítica ao desempenho recente dos Estados, ele ainda foi melhor que o federal quando tomamos o longo prazo."

Essa diferença acaba não aparecendo, diz Afonso, porque não há limite estabelecido ao endividamento do governo federal, que ainda pode emitir moeda, títulos e medidas provisórias livremente. "O Rio e os demais Estados, quando em crise, só podem passar o chapéu em Brasília", afirma o economista.

O comportamento entre União e Estados teve um grande diferencial no caso da dívida, mostra o estudo, com grandes saltos na crise de 2009 e, sobretudo, depois de 2013. "Se os Estados se endividaram muito nos últimos anos, inclusive com garantias e funding federal, o desempenho seria muito pior se tivessem se endividado no mesmo ritmo do governo federal. Já no caso da receita, as curvas ficaram mais próximas. A arrecadação federal se comportou só um pouco melhor que a estadual até 2013. Mas, nos últimos anos, desabou mais rapidamente."

Além de a dívida federal crescer mais que o agregado estadual, salienta Afonso, a dívida chegou a cair em termos reais em 13 Estados no período de 2001 a 2015. "Ou seja, em metade deles diminuiu o saldo devedor enquanto crescia a receita. Mesmo considerando os últimos cinco anos, de desajuste fiscal, chama atenção que seis Estados diminuíram sua dívida em termos reais, e em outros dez a dívida cresceu menos que a federal."

O fato de estarem sujeitos a diferentes restrições para se endividar - seja limitações definidas no contrato de rolagem da dívida, como veto para emissão de títulos, seja pelos tetos definidos por resoluções do Senado e LRF -, ajuda a explicar o melhor desempenho dos Estados em relação ao endividamento, avalia Afonso.

"Até hoje a União nunca foi submetida a qualquer restrição porque, mesmo previsto na Constituição e na LRF, os dois limites para dívida, um para a consolidada e outro para a federal, nunca foram aprovados pelo Congresso Nacional, diante da objeção das autoridades econômicas", diz o economista. "Fora isso, o Tesouro Nacional sempre pôde colocar papéis livremente junto ao Banco Central, e este junto ao mercado, inclusive via operações compromissadas."

Amir Khair, especialista em contas públicas, lembra que nos últimos anos a arrecadação tributária federal perdeu força em razão da queda de lucratividade das empresas, como efeito da crise, em tributos como o Imposto de Renda (IR) e a a Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL).

Ao mesmo tempo, a política de desoneração de folha, destaca Khair, pressionou ainda mais para baixo a arrecadação da contribuição previdenciária, que nos últimos dois anos também começou a perder fôlego, acompanhando a deterioração do mercado de trabalho. "A desoneração fez diferença, porque beneficiou a contribuição do empregador, que é, na regra geral, de 20% da folha de salários."

Nesse período, diz Khair, os Estados sofreram perda de arrecadação e de transferências da União, mas apesar de não terem mecanismos maiores de financiamento, os governos elevaram as alíquotas do ITCMD, tributo cobrado sobre doações e heranças, e do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS), principalmente em itens como energia elétrica, combustíveis e telecomunicações.

A troca do indexador da dívida dos Estados, com o recálculo do estoque, trouxe um pouco de alívio aos governos regionais, embora não tenha tirado os casos mais críticos de um índice de endividamento próximo do limite. O governo fluminense fechou o primeiro quadrimestre deste ano com endividamento de 191,59%. Os Estados do Rio Grande do Sul e de Minas Gerais ficaram com 217,58% e 187,78%, respectivamente.

Para Afonso, as novas condições, incluindo a renegociação da dívida com a União, pouco ou nada muda o quadro dos Estados. No curto prazo, afirma o economista, já ocorreu um aumento da dívida quando se deixou de honrar o serviço vencido nos últimos meses. "Mas, na prática, foi menos uma benesse e sim a imposição de uma realidade, que faltou aos Estados caixa para pagar os juros e o principal, como carece até mesmo para pagar fornecedores e salários."

Limitar o crescimento do gasto à inflação também não deve mudar esse quadro a curtíssimo prazo, diz Afonso. "Sem alternativas para se financiar, os gastos de quase todos os Estados estão derretendo, caindo em termos reais. Ou seja, essa condição já é atendida pelos Estados. De novo, quem não cumpria era a União."