Valor econômico, v. 17, n. 4071, 17/08/2016. Brasil, p. A2

Chanceler do Uruguai acusa Brasil de tentar 'comprar' veto à Venezuela

Por: Fabio Murakawa

 

O chanceler do Uruguai, Rodolfo Nin Novoa, acusou o ministro das Relações Exteriores, José Serra, de tentar "comprar" o apoio do país à posição brasileira de impedir que a Venezuela assuma a presidência rotativa do Mercosul, abrindo um novo capítulo na crise diplomática entre os países membros do bloco sul-americano.

A declaração foi publicada ontem no jornal uruguaio "El País", reproduzindo notas taquigráficas de uma fala do chanceler à Comissão de Assuntos Internacionais da Câmara dos Deputados do país vizinho, em 10 de agosto.

"Não gostamos muito que o chanceler Serra veio ao Uruguai para nos dizer - e o fez em público, por isso digo - que vinham com a pretensão de que se suspendesse a transmissão [da presidência do bloco para a Venezuela]. E que, além disso, se fosse suspensa, nos levariam em suas negociações comerciais com outros países, como querendo comprar o voto do Uruguai", disse o chanceler aos deputados, segundo o "El País".

Em outro trecho, o uruguaio afirma que "a Venezuela é legítimo ocupante da presidência pro-tempore e, portanto, quando convocar uma reunião, o governo uruguaio assistirá", algo que Brasil e Paraguai já deixaram claro que não farão. "O Uruguai vai estar presente. Se os outros não forem, será responsabilidade deles."

À tarde, com a fala de Novoa já ecoando em sites de toda a América do Sul, o secretário-geral das Relações Exteriores, Marcos Galvão, cobrava explicações do embaixador do Uruguai em Brasília, Carlos Daniel Amorín-Tenconi, no Palácio do Itamaraty.

Ao fim da reunião, o ministério emitiu um comunicado em que diz ter recebido "com profundo descontentamento e surpresa" as declarações, cujo teor "não é compatível com a excelência das relações entre o Brasil e o Uruguai". E que o Brasil tem buscado, "de maneira construtiva, uma solução para o impasse" no Mercosul.

No comunicado, o Itamaraty justifica a suposta oferta de Serra - vista em Montevidéu como uma "tentativa de comprar o voto do Uruguai" - dizendo que ele "tratou com o presidente Tabaré Vázquez e com o chanceler Nin Novoa do potencial de aprofundamento das relações entre o Brasil e o Uruguai e de oportunidades que os dois países podem e devem explorar conjuntamente em terceiros mercados". "O Brasil considera o Uruguai um parceiro estratégico."

Serra esteve em Montevidéu em 5 de julho, acompanhado do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, para reunir-se com Novoa e Vázquez. O objetivo principal da visita era tentar encontrar uma solução para o impasse no Mercosul.

O Uruguai, que ainda presidia o Mercosul, defendia a passagem do bastão para a Venezuela, obedecendo à tradicional ordem alfabética. Mas Brasil e Paraguai tentavam evitar que isso ocorresse, alegando que os venezuelanos não haviam incorporado todo o acervo normativo perto do encerramento de um prazo de quatro anos.

Serra tentava convencer Vázquez a continuar no posto até que se chegasse a uma solução. Mas o ele entregou a presidência do bloco dias depois, deixando-a vaga - algo que jamais ocorrera.

Novoa disse aos deputados que o Brasil faria "uma grande ofensiva comercial na África subsaariana e no Irã e queria levar o Uruguai, não todo o Mercosul, como sócio". E que o presidente Vázquez ficou "muito incomodado" com isso.

"O presidente disse na cara dele [Serra], clara e inequivocamente: o Uruguai vai cumprir com a normativa e chamar a uma mudança da presidência [do Mercosul]", disse.

Novoa afirmou ainda que Brasil e Paraguai usam argumentos "eminentemente políticos" e que invocam razões que não estão no corpo normativo do bloco para "burlar, erodir, fazer bullying à presidência da Venezuela".

Mais recentemente, Serra defendeu o rebaixamento da Venezuela à categoria de membro não pleno do Mercosul. E que a presidência seja exercida em colegiado ou pela Argentina, a próxima da vez pela ordem alfabética.

Em mais de uma ocasião, o chanceler brasileiro disse que o presidente venezuelano, Nicolás Maduro, não tem condições de liderar o Mercosul "porque não é capaz de governar o próprio país".

A Venezuela, por seu lado, diz que há uma "nova Operação Condor" em andamento na região - em referência à coordenação entre ditaduras sul-americanas para caçar militantes de esquerda na década de 1970. Maduro disse que Brasil, Paraguai e Argentina formam, contra seu país, uma "nova Tríplice Aliança" - como a da Guerra do Paraguai, em que brasileiros, uruguaios e argentinos dizimaram o vizinho, no século XIX.