Impasse no Mercosul reflete crises de Brasil e Venezuela, afirmam analistas
O impasse que deixou o Mercosul sem comando desde 1º de agosto é reflexo tanto da crise econômica da Venezuela como da crise política do Brasil, um cenário que deixa os dois países voltados para os próprios problemas e sem exercer plenamente uma política externa, segundo analistas e diplomatas ouvidos pelo Valor.
Para eles, os países membros pagam agora a fatura da entrada da Venezuela no bloco há quatro anos, acordada em meio à suspensão do Paraguai após o processo relâmpago de impeachment do então presidente Fernando Lugo.
A presidência do Mercosul está vaga desde que o Uruguai deu por concluído seu período semestral à frente do bloco, reafirmando seu desejo de passar o bastão para a Venezuela, segundo a tradicional rotação por ordem alfabética.
Mas Brasil, Argentina e Paraguai têm trabalhado para impedir que isso aconteça.
"Nenhum país se preocupa com a política externa quando tem os problemas políticos que tem o Brasil. Nenhum país se preocupa com a política externa quando tem os problemas econômicos da Venezuela", disse a chilena Marta Lagos, diretora-executiva do centro de análises Latinobarómetro, sediado em Santiago.
Sobre as declarações hostis trocadas recentemente em notas e declarações entre Caracas e Brasília, pouco comuns na diplomacia, ela afirma: "São dois países que estão em crise, em que um trata de colocar a culpa no outro. Me parece um jogo bastante conhecido".
A Venezuela deve ter uma contração de 10% de sua economia neste ano, com inflação de 700%, segundo o Fundo Monetário Internacional (FMI). Já o Brasil está para concluir, em menos de duas semanas, um processo de impeachment da presidente afastada Dilma Rousseff. O país funciona desde abril com um governo interino, o que também limita sua capacidade de ação na esfera internacional.
Esse cenário afeta a performance do chanceler brasileiro José Serra, na opinião de Juan Pablo Lohlé, que foi embaixador da Argentina no Brasil entre 2003 e 2011, durante os governos de Néstor e Cristina Kirchner. "Eu acho que Serra tem os problemas que tem alguém que não está definitivamente consolidado no poder", disse Lohlé. "Tem um vácuo para tomar decisões, que vai se resolver ao final do processo de impeachment."
Para Marta Lagos, do Latinobarómetro, entretanto, essa não é uma certeza. Referindo-se principalmente ao desfecho ainda incerto da Operação Lava-Jato, ela diz que o fim da crise no Brasil depende "não somente de quem fica" no poder, "mas também de como se resolvem os problemas de corrupção e os problemas políticos e de quem vai estar impedido [de concorrer à Presidência] por acusações múltiplas [de corrupção].
Apesar de apontar as limitações típicas de um governo interino, Marta Lagos tem críticas à atuação do chanceler brasileiro no trato com venezuelanos e uruguaios, hoje do lado oposto à trincheira brasileira na disputa dentro do bloco regional.
Em declarações a deputados em Montevidéu vazadas à imprensa, o chanceler uruguaio, Rodolfo Nin Novoa, acusou Serra de tentar "comprar" o voto de seu país contra a para impedir que a Venezuela assumisse a presidência rotativa do bloco. Após um grande mal estar, ele teria telefonado ao ministro brasileiro para dizer ter se tratado de um "mal-entendido".
Para a chilena, o episódio "só fala da falta de destreza diplomática de Serra". "Os Estados Unidos fazem isso há cem anos nas Nações Unidas, conseguem os votos assim. Mas normalmente ninguém fica sabendo. Ou fica sabendo de muito pouco", disse ela. "Se você fica sabendo praticamente no dia seguinte, significa que não souberam fazer."
Segundo ela, "a conquista do outro é parte da política". "O problema é como se pede o voto ao outro", disse. "Esta me parece uma missão falida, em que o Brasil está mostrando como a crise afeta sua capacidade de fazer diplomacia."
A chilena pondera, entretanto, que "o problema não é Serra, o problema é o país". "Que grande diplomacia pode ter um país que tem uma crise política como a que tem?", questiona.
Em relação à Venezuela, é quase unânime a percepção de que o vizinho, mergulhado em uma crise política e econômica, não tem mesmo condições para liderar o Mercosul. Mas, além do problema circunstancial da crise, há outro de ordem ideológica que dificulta a presença do país no bloco.
"Se você prestar atenção nas declarações do Hugo Chávez, continuadas pelo presidente Nicolás Maduro, sobre como eles veem o relacionamento internacional, qual é o modelo de crescimento e de desenvolvimento econômico, qual é a política externa e como é que uma se relaciona com a outra, você verá que os o objetivos do bolivarianismo são incompatíveis com as premissas do Tratado de Assunção [pedra fundamental do Mercosul]", disse José Botafogo Gonçalves, embaixador do Brasil na Argentina entre 2002 e 2004.
Em sua opinião, a origem da crise atual no Mercosul está no "erro" de haver admitido os venezuelanos no bloco, apesar dessas características de seu governo. "O governo que pretende fazer o socialismo do século XXI, não aceita as regras do mercado, não aceita negociar com os Estados Unidos, não é a favor do capitalismo e, sim, do Estado ser dono de todos os meios de produção, não pode fazer parte do Mercosul, cujos objetivos são completamente diferentes desses."
Nesse ponto, o argentino Lohlé concorda com Botafogo. "Existe hoje entre nossos países um divórcio real", disse. "[O Mercosul] tem objetivos políticos internos e externos que são bem diferentes dos da Venezuela."
Repetindo o bordão de Marta Lagos, Botafogo afirma que "o problema não é o José Serra". "O problema é que Argentina, Brasil e Paraguai estão de um lado, e o Uruguai, tentando forçar uma solução que não é eficaz", disse. "O que o Serra tem que fazer, junto com Argentina e Paraguai, é tocar a bola pra frente e não admitir a presença, ainda que temporária, da Venezuela na presidência do bloco."
Valor econômico, v. 17, n. 4073, 19/08/2016. Brasil, p. A2