O novo rosto da guerra

19/08/2016

 

 

Foto após resgate de menino de 5 anos choca o mundo e evidencia catástrofe em Aleppo

Omran Daqneesh tem apenas 5 anos, o mesmo tempo que dura a guerra civil na Síria. Mas se transformou no novo rosto da tragédia depois que uma imagem sua sentado numa ambulância, após ser resgatado de escombros, ganhou repercussão mundial. Coberto de poeira e com a cabeça ensanguentada, Omran foi salvo com os três irmãos — com idades de 1, 6 e 11 anos — a mãe e o pai após seu prédio ser atingido por um bombardeio aéreo na cidade sitiada de Aleppo, na noite de quarta-feira. Ativistas culpam o regime sírio e a Rússia pelos ataques, que deixaram oito mortos, incluindo cinco crianças. Desde que a guerra começou, 4.500 crianças foram mortas na cidade no Norte do país, a principal de Síria.

A imagem — do fotógrafo Mahmoud Raslan — captura o momento em que Omran percebe que está sangrando. E foi compartilhada milhares de vezes nas redes sociais, incluindo por David Miliband, ex-secretário das Relações Exteriores do Reino Unido e hoje presidente do Comitê Internacional de Resgate. Socorristas passaram o menino de varanda em varanda, retirando a família momentos antes de o prédio inteiro desabar. Segundo a Syrian American Medical Society, ele foi hospitalizado, mas já teve alta. Outras 12 crianças foram encaminhadas para o mesmo hospital.

— Já tirei muitas fotos de crianças mortas ou feridas por bombardeios. Normalmente elas estão desmaiadas ou choram. Mas Omran estava lá sem voz, com o olhar perdido. É como se não compreendesse muito bem o que tinha acabado de acontecer.

Outro vídeo comovente de Omran, publicado pelo grupo ativista Aleppo Media Center, mostra um funcionário da defesa civil carregando o menino para uma ambulância. Já sentado, em segurança, ele levanta a mão esquerda até o olho e sente a área machucada na cabeça. Enxuga o rosto e percebe o sangue. Sem falar nada, limpa a mão no banco. Omran, que só conheceu a guerra, não chorou em nenhum momento do resgate.

— A verdade é que a imagem se repete todo dia em Aleppo — desabafou à CNN Mustafa al-Sarouq, que gravou o vídeo. — E o mundo está em silêncio. Há milhares de crianças sendo bombardeadas.

Na quarta-feira, mais três pessoas morreram e outras 12 ficaram feridas no bairro onde a família vive, controlado pelos rebeldes, de acordo com o Observatório Sírio para os Direitos Humanos. Acredita-se que um dos mortos seja parente de Omran.

AJUDA HUMANITÁRIA NÃO CHEGA

Ontem, John Kirby, porta-voz do Departamento de Estado dos EUA, disse que Omran era o “verdadeiro rosto do que de fato acontece na Síria”

— Suponho que este menino jamais tenha passado um dia de sua vida longe da guerra, da morte, da destruição e da pobreza em seu país.

Após a comoção, os 28 países da União Europeia exigiram o “fim imediato” dos combates na cidade para garantir as operações humanitárias, segundo um comunicado da chefe da diplomacia do bloco, Federica Mogherini. A Rússia, por sua vez, anunciou estar disposta a instaurar, a partir da próxima semana, uma pausa semanal de 48 horas nos ataques.

Socorristas levaram quase uma hora para tirar Omran dos escombros, escavando o local sob a luz de uma lanterna. O médico que o tratou disse que sua lesão era leve em comparação a de outros feridos. O menino recebeu alta duas horas depois.

— Durante todo o tempo, ele estava sob o mesmo torpor e choque — disse Mohammedd, cirurgião de Aleppo que preferiu não dar seu sobrenome por razões de segurança.

Mas Omran teve a sorte de escapar. Segundo o Aleppo Media Center, 4.500 crianças foram mortas na cidade e cerca de cem mil permanecem lá. Na semana passada, a ONG Save the Children denunciou o aumento dos ataques a escolas na cidade, assim como em Idlib — mais de 6.500 delas foram destruídas até agora. Em apenas sete dias, seis escolas foram atacadas, matando alunos e professores.

— Os menores que vão ao colégio correm um grave perigo — disse Helle Thorning-Schmidt, diretora executiva da ONG: — Muitos estudam em porões para se proteger, e desviam dos tiros a caminho da escola para fazer as provas.

O caso também joga mais luz sobre a cidade, há meses sitiada. Crucial no conflito sírio, em que as forças do regime de Damasco e os rebeldes se enfrentam duramente, Aleppo vive hoje uma profunda crise humanitária, que inclui a falta de médicos, suprimentos hospitalares, alimentos, água e luz.

— Quando chegamos, o regime ataca novamente as equipes de resgate que tentam salvar civis — diz Sarouq. — As condições de vida são terríveis.

No último mês, nenhum comboio conseguiu entrar nas áreas sitiadas, segundo o enviado especial da ONU, Staffan de Mistura, que, irritado, cancelou a reunião semanal sobre o tema:

— Suspendi a reunião como sinal de nossa profunda insatisfação com o fato de a ajuda não estar chegando à Síria, devido à falta de uma trégua.



 

O globo, n. 30328, 19/08/2016. Mundo, p. 27.