Valor econômico, v. 17, n. 4080, 30/08/2016. Política, p. A6

Dilma culpa Cunha e se diz vítima de golpe

Presidente afastada propôs plebiscito, com pouca ênfase

Por: Fabio Graner / Murillo Camarotto / Vandson Lima / Thiago Resende

 

Em um discurso de forte tom político, repleto de expressões como "golpe" e "injustiça", a presidente afastada Dilma Rousseff fez ontem sua defesa no Senado alegando que, pela segunda vez, a democracia era levada junto com ela ao banco dos réus.

Dilma defendeu que o impeachment, se consumado, é uma "pena de morte política". Hoje, acusação, defesa e senadores apresentarão suas alegações. Ao final, será realizada a votação. Se 54 dos 81 senadores votarem para condenar Dilma por crime de responsabilidade, ela terá seu mandato cassado em definitivo.

Embora por vezes evasiva, Dilma abordou questões de mérito em torno dos decretos de créditos suplementares e das "pedaladas fiscais" (atrasos de pagamentos do Tesouro Nacional aos bancos públicos), dizendo que agiu dentro da lei e não cometeu crime de responsabilidade.

Diante dos senadores, juízes naturais do processo, Dilma deu ênfase ao papel desempenhado pelo ex-presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), no processo de impeachment. Chamou o governo interino de Michel Temer de "usurpador" e "misógino", mas não foi enfática em seu discurso, como se esperava, em apoiar a proposta de um plebiscito para antecipar as eleições presidenciais, caso seja absolvida.

"Tenho a consciência tranquila. Não pratiquei nenhum crime de responsabilidade. As acusações dirigidas contra mim são injustas e descabidas. Cassar em definitivo meu mandato é como me submeter a uma pena de morte política", afirmou Dilma. Para ela, as questões das pedaladas fiscais e dos decretos "são pretextos" para derrubar seu governo, que ela repetiu diversas vezes ter sido eleito em disputa com a participação de 110 milhões de brasileiros. "São pretextos para viabilizar um golpe na Constituição. Um golpe que, se consumado, resultará na eleição indireta de um governo usurpador", afirmou Dilma.

O discurso foi acompanhado por um plenário tomado não só por senadores, mas também por deputados e convidados como o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o cantor e compositor Chico Buarque, ex-ministros, como Jaques Wagner e Míriam Belchior, e apoiadores políticos.

Orientada para fazer uma fala mais política pelo próprio Lula (ver a reportagem Lula aprova tom político de discurso), já que seu discurso seria não só para os senadores, mas para todo o Brasil, a presidente afastada seguiu o roteiro, pelo menos no primeiro momento. Disse que o processo em curso era um "golpe parlamentar", uma versão que seria como a presença de um fungo na "árvore da democracia".

"Agora, a ruptura democrática se dá por meio da violência moral e de pretextos constitucionais para que se empreste aparência de legitimidade ao governo que assume sem o amparo das urnas. Invoca-se a Constituição para que o mundo das aparências encubra hipocritamente o mundo dos fatos", disse a presidente afastada.

A repetição constante da expressão "golpe" já no discurso inicial irritou os senadores da base do atual governo, que chegaram a pedir direito de resposta assim que a fala inicial da presidente afastada foi concluída. O pedido, contudo, foi negado pelo presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Ricardo Lewandowski. Ele argumentou que Dilma não fez afirmações caluniosas diretamente a alguém e que seria natural que, na defesa do mandato e da honra pessoal dela, seja concedida uma "amplitude maior de expressão".

Com o aval dado pelo presidente do STF, a palavra foi repetida também diversas vezes durante a fase de perguntas e respostas. "Estamos diante de um golpe parlamentar sim, enquanto não provarem crime de responsabilidade", argumentou Dilma.

O clima dentro do plenário foi bem mais tranquilo do que nos dois primeiros dias, quando a agressividade entre senadores aliados e contrários a Dilma gerou ataques pessoais, atrasos e diversas suspensões das sessões. Os senadores contrários à presidente afastada criticaram não só os decretos de créditos suplementares e as "pedaladas", mas muitas vezes repetiram que ela mentiu nas eleições e que sua conduta na política fiscal levou o país a uma situação de grave recessão, queda do emprego e da renda e maior desarranjo fiscal. A sessão ainda não havia sido encerrada até o fechamento desta edição.

Um dos momentos mais esperados era o embate entre o senador mineiro Aécio Neves, presidente do PSDB e que foi derrotado por Dilma na eleição de 2014. Pouco antes de questioná-la diretamente, Aécio avaliou o discurso dela como "político, até correto", mas "protocolar", "evasivo" e "voltado para a história".

Ao dirigir sua pergunta a Dilma, Aécio destacou que ela durante a campanha negava a situação de crise na economia brasileira e a necessidade de ajustes e disse que a presidente afastada "mentiu" à população brasileira para poder continuar no cargo e cometia "pedaladas" reiteradamente.

Dilma respondeu que seu segundo mandato foi alvo de desestabilização por parte da oposição e que não aceita "eleição indireta". Ela lembrou que, desde que as urnas foram fechadas, o PSDB tem questionado o resultado e buscado tirá-la do governo.

Em relação às previsões econômicas, Dilma elencou uma série de fatores, entre os quais a queda nos preços das commodities, em especial do petróleo, mudanças na política monetária dos Estados Unidos, desaceleração da China, a crise hídrica vivida no país e a chegada de Eduardo Cunha ao comando da Câmara.

Cunha, aliás, teve um tratamento todo especial por Dilma e seus aliados. O ex-presidente da Câmara foi apontado diversas vezes como alguém que chantageou o governo com a abertura do processo de impeachment e que, apesar das denúncias de corrupção, será julgado só depois dela. Para ela, Cunha é o verdadeiro protagonista do processo e os demais agentes são coadjuvantes que ajudam a levar ao poder um governo e um programa que não foram aprovados nas urnas.

"Todos sabem que este processo de impeachment foi aberto por uma "chantagem explícita" do ex-presidente da Câmara, Eduardo Cunha, como chegou a reconhecer em declarações à imprensa um dos próprios denunciantes. Exigia aquele parlamentar que eu intercedesse para que deputados do meu partido não votassem pela abertura do seu processo de cassação. Nunca aceitei na minha vida ameaças ou chantagens. Se não o fiz antes, não o faria na condição de presidenta da República", afirmou. "É fato, porém, que não ter me curvado a esta chantagem motivou o recebimento da denúncia por crime de responsabilidade e a abertura deste processo, sob o aplauso dos derrotados em 2014 e dos temerosos pelas investigações", acrescentou.

De acordo com Dilma, Cunha contou com o apoio dos partidos que hoje apoiam o governo interino para implementar uma agenda de pautas-bomba que inviabilizaram o combate à recessão. "Foram tomadas medidas para inviabilizar meu governo", afirmou Dilma. "Não podemos aceitar que se insista na política do quanto pior, melhor. Oposição deve defender política contrária à da situação, mas não pode impedir que um país em grave situação saia da crise", afirmou a presidente.

Em resposta, Eduardo Cunha criticou a fala da adversária e disse que ela "mente". "A presidente afastada segue mentindo contumazmente, visando a dar seguimento ao papel de personagens de documentário que resolveu exercer, após a certeza do seu impedimento, em curso pelo julgamento em andamento", afirmou no texto. Para o pemedebista, Dilma usa a estratégia de repetir uma mentira até que ela se torne verdade.

Cunha menciona que o argumento da presidente afastada de que foi vítima de "desvio de poder" por parte dele já foi analisado pelo Supremo e "não teve sucesso", o que "reafirma a lisura" do ato.

"As tentativas de barganhas para que eu não abrisse o processo de impeachment partiram do governo dela e por mim não foram aceitas, como já declarei em diversas oportunidades, denunciando com nomes e detalhes essas tentativas. Isso sim foi chantagem."

O pemedebista reclamou ainda das afirmações da presidente sobre as chamadas "pautas bomba", negando que tenha dado seguimento a propostas prejudiciais ao governo. Também afirmou que ela mentiu mais uma vez ao dizer que a Câmara esteve paralisada no início de 2016.

Depois de divulgada a nota do ex-presidente da Câmara, Dilma voltou à carga. "Esse foi um processo que talvez começou no final do meu governo, mas se intensificou de forma acelerada no meu segundo mandato. [Um processo] no qual o centro democrático deixa de ser um centro progressista e passa a ser um centro golpista e conservador", disse. "Esse é um processo que tem um líder. Eu acredito que o senhor Michel Temer seja um coadjuvante. Acho que o líder é o senhor Eduardo Cunha ou era até então o senhor Eduardo Cunha."

Segundo ela, Temer foi escolhido e convidado para ser seu vice porque se supunha que o pemedebista era integrante desse centro democrático progressista e transformador. "Nós acreditávamos que ele representava o que havia de melhor no PMDB", sublinhou. "Eu não sei dizer quando isso começou a mudar, mas o certo é que começou a mudar. "Eu lamento muito que eu tenha, através dos meus gestos, construído essa hipótese de ter um vice que representasse um centro democrático que sempre, até então, tinha dado governabilidade ao país."

O relator do processo de impeachment, senador Antonio Anastasia (PSDB-MG) questionou por que Dilma assinou os decretos se já sabia que a meta de resultado fiscal seria alterada. Ao se defender, Dilma se apegou ao argumento de que a edição deles estava prevista na lei orçamentária de 2015, aprovada pelo Congresso Nacional.

Ela também discordou da avaliação do relator e demais senadores alinhados à acusação de que as operações com o Banco do Brasil para o Plano Safra configuram em operação de crédito ilegal. Em tom irônico, Dilma afirmou as políticas de subvenções agrícolas são fundamentais para um país e que seu governo investiu nessa rubrica cem vezes mais do que o PSDB, partido de Anastasia. "Foi de R$ 2 bilhões para R$ 200 bilhões", disse.

Para ela, o Tribunal de Contas da União (TCU) mudou as regras do jogo ao exigir o pagamento dos atrasados, situação agravada em um ambiente de queda de receita e crise fiscal. Na visão de Dilma, a justificativa do impeachment levará os governos a terem postura fiscal mais frouxa para evitar processos como o dela e ainda vai gera instabilidade política em estados e municípios, pois maiorias de ocasião poderão derrubar governos.

Dilma também atacou o atual governo, que ela classifica de "usurpador". Criticou a principal medida econômica anunciada pela equipe econômica do presidente interino Michel Temer, a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) que limita o crescimento dos gastos públicos pela inflação nos próximos 20 anos. E disse que está se implantando um programa de governo que foi derrotado nas urnas.

O Palácio do Planalto reagiu em nota, dizendo que não serão retirados direitos sociais, previdenciários e trabalhistas. "Todas [as propostas] respeitarão os direitos e garantias constitucionais", afirmou.

Segundo ela, é necessário fazer reformas no Brasil, mas para isso é preciso olhar também o lado dos trabalhadores, da classe média e os programas sociais. Para Dilma, o caminho não é "política de corte de gastos por 20 anos que reduz valores pagos per capita de saúde e educação". Ela ressaltou que a PEC atinge cinco mandatos presidenciais.

A presidente afastada reconheceu que é preciso rever o problema do excesso de gastos obrigatórios no Brasil, mas também assumiu uma bandeira cara à esquerda: uma reforma no lado das receitas, reduzindo a chamada regressividade do sistema tributário brasileiro, na qual que paga mais impostos é quem ganha menos. Dilma afirmou que é preciso juntar em um fórum trabalhadores, empresários, parlamentares e governo para definir quais reformas devem ser feitas no Brasil. Ela também criticou a política de valorização cambial do atual governo.

Contestada pela falta de diálogo com o Parlamento pelo senador Eduardo Amorim (PSC-SE), Dilma responde que embora o diálogo seja uma necessidade para quem está na presidência, a falta dele "não é base para crime de responsabilidade". Mas ela acabou fazendo um mea-culpa sobre isso. "Senador, receba minhas desculpas por não ter atendido suas expectativas quanto ao diálogo, é algo que tenho clareza que é importante que seja feito, mas, reitero, não é base para crime de responsabilidade".

Em resposta ao discurso da senadora e ex-ministra da Casa Civil, Gleisi Hoffmann (PT-PR), Dilma destacou o crescimento dos investimentos em sua gestão.

A senadora fez um dos discursos mais enfáticos em defesa de Dilma e disse que o Senado vive um "momento cretino" e que o processo em curso é "farsesco" e "misógino". A petista disse que muitos senadores que atacam Dilma pela questão fiscal estavam cobrando delas obras em seus estados, o que será prejudicado pela PEC do gasto.

Considerado antes o principal ponto do discurso que Dilma Rousseff apresentaria em seu pronunciamento ao Senado, a defesa da convocação de um plebiscito para antecipar as eleições presidenciais, caso seja absolvida, acabou escanteada e resumida a duas frases dentro da fala da presidente afastada.

Das 4.799 palavras utilizadas pela presidente em seu pronunciamento inicial, foram tímidas 46 as que se referiram à realização de um novo processo eleitoral, e ainda assim de forma pouco direta. "Chego à última etapa desse processo comprometida com a realização de uma demanda da maioria dos brasileiros: convocá-los a decidir, nas urnas, sobre o futuro de nosso país. Diálogo, participação e voto direto e livre são as melhores armas que temos para a preservação da democracia". A proposta de plebiscito ganhou menos espaço no discurso que, por exemplo, a citação de Dilma em homenagem às mulheres. (Com Rafael Bitencourt, Carolina Oms, Letícia Casado, Cristiane Bonfanti, Lucas Marchesini e Cristiano Zaia)

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