"A Lava-Jato é um ponto fora da curva"

 

 
29/08/2016
André Guilherme Vieira
Maria Cristina Fernandes
 

 

Deltan Dallagnol é o principal porta-voz, entre os 11 procuradores da República que atuam na Lava-Jato, na defesa das dez medidas anticorrupção que tramitam na Câmara dos Deputados. Calcula ter rodado o país em mais de 150 palestras sobre o tema. O ministro do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes, criticou a validação de provas ilícitas, lá contidas, comparando-a à tortura. Ao classificar de 'cretinos' os autores das medidas, é mais do que provável que tenha mirado Dallagnol.

Com um didatismo pastoral sobre cada uma das medidas, o procurador não engole a isca oferecida por Gilmar. Limita-se a classificar as acusações de 'estratégia retórica', pedir que cada crítico apresente alternativas e diz que o combate às medidas visa a proteger ricos e poderosos. Rejeita objeções, já verbalizadas pelo presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), e pelo presidente interino Michel Temer, no sentido de se explicitar a diferenciação entre caixa dois e propina. Para o procurador, a distinção já está clara na lei e é a obtenção de provas que pode relacionar os dois crimes. O procurador diz não ter sido procurado para discutir os termos de uma anistia para a Lava-Jato e afirma que a proposta seria um retrocesso no combate à corrupção.

Nascido em Pato Branco (PR), Dallagnol tem 36 anos, é casado e tem um filho de três anos, Thomas, com quem atrasa por meia hora um encontro para ter certeza de que os jornalistas serão convencidos da importância das medidas - "Precisamos de vocês envolvidos, precisamos ganhar vocês".

Formado pela Universidade Federal do Paraná e mestre em direito pela Universidade de Harvard, é entusiasta do sistema penal americano, a quem recorre continuamente na defesa de suas medidas anticorrupção.

No fim da tarde de quinta-feira, servindo-se de salada de frutas em um pote de plástico, Dallagnol recebeu a reportagem do Valor no prédio que sedia a operação Lava-Jato, em Curitiba. No hall de acesso à força-tarefa, no 8º andar, o advogado Alberto Toron, que defende Fernando Bittar - investigado no caso do sítio de Atibaia e sócio de um filho do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva -, andava de um lado ao outro falando ao celular com o escritório em São Paulo.

A seguir, a entrevista:

 

Valor: O senhor esperava tamanha reação às medidas?

Deltan Dallagnol: Existe muito mais apoio que reação. Temos mais de mil entidades apoiando, inclusive defensorias públicas, OABs, entidades do Judiciário, tribunais eleitorais e de justiça, além de uma série de operadores do direito. Agora, no Brasil, existe uma cultura de garantismo hiperbólico monocular ou hipergarantismo. Concordamos com a proteção das garantias e direitos fundamentais. No Brasil existe um garantismo que não olha para os direitos das vítimas e da sociedade, apenas os dos réus. Por isso ele é monocular. E, além disso, é excessivo, hiperbólico. Isso existe no Brasil há muito tempo, talvez até como ranço da ditadura militar. Qualquer modificação que busque tornar o direito penal mais eficiente leva pessoas que viveram esse período a entender essas modificações como cerceamento de direitos. Esse desequilíbrio entre o direito dos réus e o das vítimas leva a que todos os grandes casos de corrupção envolvendo pessoas influentes acabem impunes.

 

Valor: Uma das maiores polêmicas das dez medidas é a validação de provas ilícitas. Este é um ponto negociável?

Dallagnol: Se a pessoa discordar do que propomos, precisa apresentar uma alternativa. A pessoa que decide praticar corrupção faz um balanço de custos e benefícios. No prato da balança de benefícios entra o dinheiro que a pessoa desvia. No prato dos custos, a probabilidade de punição. Esse prato não pesa nada porque a probabilidade de punição é de 3%, e, ainda assim, com penas alternativas. Nessa balança de pratos existe um estímulo à corrupção no Brasil. Foi isso que nos levou às 10 medidas.

 

Valor: As delações têm empacado no momento em que o empresário resiste a reconhecer vínculo entre o caixa dois e o benefício futuro. As medidas criam uma tipificação penal para juntar os dois crimes?

Dallagnol: São crimes independentes. A tipificação do caixa dois vai facilitar essa associação. Mas não basta tipificar o crime, é preciso aplicar a pena num prazo razoável. Vejam o que aconteceu no caso dos "Anões do Orçamento". Parlamentares recebiam dinheiro para destinar emendas a parentes e laranjas ou destinavam para obras publicas específicas e recebiam uma comissão por isso. O esquema não era tão distante daquele que temos hoje. Havia dois políticos lá que voltaram a aparecer na Lava-Jato [o ex-ministro Geddel Vieira Lima (PMDB-BA) e o atual senador Edison Lobão (PMDB-MA), que na época foram inocentados]. Se tivéssemos um quadro jurídico mais adequado lá atrás talvez não tivesse voltado a ocorrer. Nenhum parlamentar foi punido. O único a ser punido foi o delator do esquema, depois de 21 anos [José Carlos Alves dos Santos, ex-chefe da assessoria de orçamento do Senado].

 

Valor: O senhor ainda não respondeu se a validação de provas ilícitas é negociável...

Dallagnol: Os grandes casos de corrupção no Brasil foram anulados com base em questões relacionadas à validação de provas, como a Castelo de Areia, caso que poderia ter antecipado a Lava-Jato em cinco ou seis anos. Descobriu-se corrupção numa das empresas que depois seria envolvida na Lava-Jato. Foram identificados pagamentos para uma série de partidos e políticos. Aquela empresa [ Camargo Corrêa ] foi a primeira identificada no esquema da Lava-Jato. Naquele caso, a investigação começou com base numa interceptação telefônica. O juiz deferiu essa interceptação com base numa notícia apócrifa que tinha por base um acordo de delação premiada sob sigilo. O caso chegou ao STJ e lá o ministro discordou da decisão do juiz de deferir a interceptação. Como se entendeu que aquela decisão estava equivocada, todas as provas foram invalidadas.

 

Valor: É aquele estado de coisas que se quer retomar?

Dallagnol: Se a polícia se baseou numa decisão judicial com aparência legítima dentro de um sistema em que a submissão daquela prova à Justica é uma garantia do cidadão, a polícia atuou de boa-fé. Não foi abusiva. Na doutrina americana está lá que quando o Estado atuou de boa-fé a prova não pode ser subtraída. Isso não teria anulado a Castelo de Areia, a Boi Barrica e uma série de outras operações.

 

Valor: Como o senhor responde à acusação de que a validação de prova ilícita naturaliza a tortura?

Dallagnol: Não tem nada a ver com tortura. Não tem como tortura ser de boa-fé. Tortura é um absurdo e gera prova ilícita. É um argumento usado como estratégia retórica para deslegitimar as medidas. Tortura é crime. É por reações como esta que todo mundo acha que a corrupção acaba em pizza. O caso Luiz Estevão, por exemplo, foi um caso simples, com apenas três réus e 90 recursos. Como se vai julgar um caso com tantos recursos? É impossível em qualquer lugar do mundo. Por essas reações é que podemos dividir as pessoas entre aquelas que querem manter o status quo e aquelas que estão cansadas de um sistema de Justiça que gera impunidade.

 

Valor: Não é muito maniqueísta isso?

Dallagnol: Toda classificação é uma simplificação da realidade. Não tenho dúvidas de que haja pessoas com críticas às medidas que são comprometidas com a sociedade e bem intencionadas. Mas há outras que não são. Existem pessoas que vão buscar argumentos porque as medidas podem atingi-las. Mais da metade do Congresso está sendo processada por crimes graves, particularmente corrupção, segundo o "The New York Times". Existem pessoas que são contra porque querem manter as brechas na lei para beneficiar pessoas ricas e poderosas.

 

Valor: Há evidências de que o Congresso venha a aceitar o agravamento do caixa dois em troca de anistia para os envolvidos na Lava-Jato. É possível? O MP caiu numa armadilha?

Dallagnol: A partir do que vimos acontecer com a Mãos Limpas, na Itália, julgamos que estávamos numa encruzilhada. A partir de denúncias de abusos que nunca foram comprovados, a opinião pública pôs um pé atrás em relação à operação e abriu espaço para um contra-ataque. Esse sistema passou a contra-atacar com uma série de projetos de lei que buscaram erodir os instrumentos de investigação e a punição das pessoas que haviam praticado crimes. Hoje é mais difícil investigar e punir corrupção na Itália do que era antes. Chegou a ser aprovada uma lei que proibia a prisão preventiva especificamente nos casos de corrupção. No Brasil queremos que nosso destino seja diferente. Que a energia da Lava-Jato gere uma transformação positiva. A reação agora precisa atacar em duas frentes. Não apenas propor medidas e projetos que erodam o combate à corrupção, como se contrapor a projetos e medidas que avancem no sentido contrário. Nesse sentido, acho que não tínhamos outra opção. A corrupção faz com que as pessoas não acreditem na mudança. É isso que conhecemos por cinismo. Nosso comprometimento é com o avanço do processo civilizatório. Essas medidas não são mais do Ministério Público. São da sociedade. Só eu fiz mais de 150 palestras. Perdi as contas.

 

Valor: E como o senhor vê a discussão da anistia para os atingidos pela Lava-Jato?

Dallagnol: Ninguém gosta da ideia de anistia. Anistia significa que pessoas que praticaram crimes graves não vão ser punidas. Não conheço propostas concretas que estejam sendo feitas para essa anistia, mas as investigações atingem pessoas poderosas, econômica e politicamente. Essas pessoas têm nas suas mãos o Estado, o poder de propor reformas legislativas. Não tenho dúvidas de que haverá propostas no sentido de diminuir penas e encurtar prazos de prescrição para impedir que as investigações sejam feitas sob alegação de abuso de autoridade. Não tenho dúvidas de que iniciativas para cercear a investigação, o processo criminal e a punição acontecerão. O escudo contra essas iniciativas é o posicionamento da sociedade e da imprensa.

 

Valor: Há um incômodo, já verbalizado por autoridades, de que o Ministério Público não distingue caixa dois de propina...

Dallagnol: A distinção existe e é clara. Em primeiro lugar existem as doações regulares. Essas doações são uma manifestação política do cidadão. Doações regulares são um exercício de cidadania que devem ser incentivadas. Fora dessas doações tem-se a prática de caixa dois. É uma doação sem registro na contabilidade de quem doa e de quem recebe. Ela é perniciosa por várias razões, dentre elas o fato de que a origem e o destino do dinheiro tendem a estar associados ao cometimento de crimes. Então você tem a doação por fora do empresário que doa dinheiro que é fruto de sonegação ou de atividade ilícita ou ainda porque o partido ou o candidato queira empregar o dinheiro de modo ilícito e, por isso, pediu que o doador não registrasse. Pode querer o dinheiro para comprar voto dos cidadãos ou para distribuir benefícios. Em terceiro lugar, tem outra situação, a da pessoa que quer corromper o agente público e vai pagar propina. Então são três coisas diferentes. A primeira é legal. A segunda é caixa dois e a terceira é a corrupção. Para juntá-las você precisa de uma prova consistente de propina.

 

Valor: O teste de integridade tal como está proposto nas dez medidas já teve objeção do juiz Sergio Moro, que opinou pela restrição a agentes públicos sobre os quais pesem fundadas suspeitas de corrupção, e à autorização judicial. O teste também desagrada policiais para quem é mandatório, ao contrário de outros agentes públicos. Como o senhor responde às críticas?

Dallagnol: Os testes de integridade são aplicados nos EUA, Austrália e Inglaterra, especificamente em relação a corporações policiais. Quando existem casos de corrupção endêmica, a mudança é obtida pela introdução de algo que mude a cultura, como o teste de integridade. Ele não parte do pressuposto da desconfiança mas da percepção de que todo agente público está sujeito ao escrutínio da sociedade. Se você for ao Google e digitar "propina estrada polícia rodoviária" vai encontrar centenas de vídeos de pessoas que registraram o ocorrido. Isso significa que o agente policial deveria estar preparado rotineiramente para a oferta de propina e deveria ter uma reação adequada e padronizada para aquilo. O teste prevê que um agente de corregedoria, com uma prévia comunicação do MP ou autorização judicial, dirija seu carro com velocidade superior à permitida e seja parado por um policial rodoviário. Naquele momento ele vai oferecer uma propina, módica. Se a pessoa aceita, será punida.

 

Valor: Mas o policial não tem razão na sua reclamação de que não está sendo tratado com isonomia?

Dallagnol: Existem carreiras que estão em contato direto com a oferta de propina e outras que não têm esse contato direto e pode ser mais difícil aplicar esse teste de integridade. Mesmo na nossa polícia pode haver setores em que não seja possível porque a pessoa pode não ter contato com o público externo, pode ter contato apenas com outros policiais.

 

Valor: O senhor acha que o teste deveria ser aplicado ao MP e ao Judiciário?

Dallagnol: Sim, a todo mundo que corra o risco de prática de corrupção. Isso pode ser aplicado para mim. Me testem. Não estou excluindo os procuradores nem me excluindo. Nem tampouco os juízes, que também podem ser subornados.

 

Valor: Como o senhor vê a proposta do deputado Onyx Lorenzoni, relator da comissão das dez medidas, de premiar o servidor que denunciar a corrupção?

Dallagnol: Essa proposta tem dois lados. Um lado é um risco de que isso estimule desvios. O policial que toma conhecimento de corrupção e tem por dever apurá-la pode decidir não fazê-lo e pedir para que um parente traga essa notícia para que essa pessoa receba um prêmio e divida com ele. Por outro lado, a prática de países que aplicam isso mostra que o resultado é excelente. Pessoas que teriam resistência a denunciar corrupção por receio de retaliação veem no prêmio um beneficio que supera o incômodo. Não estamos assumindo o monopólio do discurso.

 

Valor: Por que as medidas não criminalizam o vazamento de informações sob segredo de Justiça?

Dallagnol: O sigilo existe para que se possa realizar busca e apreensão além de medidas cautelares com surpresa. Para que as pessoas não destruam as evidências antes de se chegar lá. Por isso o vazamento prejudica mais do que tudo as investigações policiais. O Judiciário tem interesse na manutenção do sigilo enquanto for necessário à realização de diligências. Depois que isso não for mais necessário a recomendação é que o sigilo seja levantado e tudo se torne público. O problema do vazamento é a descoberta da origem dele, porque emerge através de um jornalista que tem direito ao sigilo da fonte.

 

Valor: O senhor reconhece que o vazamento é maior no Brasil?

Dallagnol: Não tenho informação. Temos delações e acordos de leniência com informações bombásticas que nunca vazaram. Nas interceptações telefônicas só tem agente público atuando. E elas não vazam. A realização de busca e apreensão não vaza. O que é que vazou? Aquilo em que atuam particulares, advogados e pessoas que estão colaborando com a Justiça mas praticaram crimes. Se você está negociando um acordo com uma grande empresa, tem aqueles que não querem o acordo porque ainda podem vir a ser investigados. Não há decisões unânimes em empresas que envolvem centenas de pessoas. Os vazamentos nos prejudicam em dois lados, a produção de provas e a credibilidade da investigação. Polícia e Justiça só têm a perder com o vazamento.

 

Valor: Já se dá como certo que depois das eleições municipais se reabrirá a discussão da proibição do financiamento empresarial. É um retrocesso?

Dallagnol: Financiamento privado sem limite é um retrocesso. Quando existe um financiamento empresarial ilimitado, a disputa eleitoral é decidida por grandes financiadores de campanha que o fazem não porque acreditam no projeto de poder, mas porque querem ter acesso ao governo. O objetivo da contribuição não é um exercício de cidadania porque as doações são feitas para todos os lados da disputa e de modo equilibrado. O objetivo, na verdade, é capturar o Estado.

 

Valor: Como ficará a Lava-Jato depois do impeachment?

Dallagnol: Como sempre esteve. Nada muda. A Lava-Jato é técnica e apartidária. A grande questão que devemos colocar é: o impeachment ou a mudança de governo é um passo na luta contra a corrupção? Não. Não muda nada porque o problema não são as pessoas, são sistemas cheios de falhas que propiciam a corrupção. Se queremos acabar com a corrupção precisamos que todas as pessoas de direita, esquerda e centro, pró e contra o impeachment, se unam em torno de uma pauta comum contra um fenômeno que sangra o país.

 

Valor: O senhor tem um prazo para a Lava-Jato?

Dallagnol: Não dá para saber com clareza. A Lava-Jato é um ponto fora da curva. A Lava-Jato muda o Brasil? Não, porque precisamos de mudança sistêmica. Não só a gente mas cada uma das pessoas, principalmente os jornalistas, que são formadores de opinião.

 

Valor: Se o MP está em cruzada para mudar o país também não deveria se manifestar de maneira mais clara sobre reajustes salariais e regalias que mantêm a corporação como uma casta no funcionalismo no meio de uma recessão?

Dallagnol: Me perguntar sobre isso é o mesmo que me perguntar qual deveria ser a política pública de saúde ou educação. Não tenho visibilidade permanente na República. Minha exposição é passageira porque recaiu sobre mim um caso.

 

Valor: Mas o senhor pertence a uma dessas corporações...

Dallagnol: Não me manifesto pela corporação. Não sou da associação dos procuradores. Minha temática é combate à corrupção e impunidade. Não sou um opinador-geral da nação.

 

Valor econômico, v. 17, n. 4079, 29/08/2016. Política, p. A14