Correio braziliense, n. 19368, 05/06/2016. Brasil, p. 6

Políticas duplicadas

Medidas anunciadas pelo governo depois do estupro coletivo de uma menina de 16 anos no Rio sofrem críticas de especialistas por serem redundantes e apontarem para um esvaziamento da Secretaria de Políticas para as Mulheres

Por: Natália Lambert

 

Criado na última semana pelo governo, após a repercussão de um estupro coletivo de uma jovem de 16 anos no Rio de Janeiro, o Núcleo de Proteção à Mulher tem recebido críticas e gerado dúvidas em profissionais que trabalham com os direitos da mulher no Brasil. Além da estrutura, a Portaria nº 586, de 1º de junho de 2016, sugere a implementação de um cadastro nacional de medidas restritivas contra agressores e o repasse de diárias extras para reforçar o efetivo das polícias estaduais no combate à violência contra a mulher. “Um salto gigantesco e efetivo nas ações de segurança pública no Brasil”, afirmou o ministro da Justiça e Cidadania, Alexandre de Moraes, na última terça-feira. Para especialistas, uma “duplicação” de política pública.

Coordenadora nacional do Comitê Latino-Americano de Defesa dos Direitos da Mulher, a advogada Gabriela Ferraz diz que as medidas propostas pelo governo já estão no âmbito da Secretaria de Políticas para as Mulheres (SPM). “Há um trabalho de 13 anos que vem construindo políticas, criou um pacto nacional — o Ligue 180 —, uma rede de atendimento e acolhimento eficaz para essas mulheres, não só em relação à violência, mas que cuida da saúde delas e do empoderamento financeiro,  ou seja, é um núcleo ineficaz.”

Gabriela acredita que um melhor caminho seria o governo investir e ampliar o trabalho existente na SPM. Ela explica que o equipamento, a ideia e a estrutura estão lá, o que falta é fortalecimento. “Precisamos de ampliação dos programas e capacitação constante dos profissionais que trabalham na ponta. A SPM tem dificuldade para chegar na ponta e nos lugares mais remotos do país.” A socióloga Lourdes Bandeira, coordenadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre a Mulher (Nepem) concorda que a solução é investir no que já existe. Para ela, o núcleo repetirá ações que vêm sendo feitas com excelência e contraria o discurso do presidente em exercício Michel Temer, na posse, quando afirmou que valorizaria o que estava sendo feito de bom.

“Esse núcleo mostra o total desconhecimento do que é feito. Casos bárbaros de violência sempre existirão e, sim, eles têm que ter um tratamento urgente, mas o aparato está todo aí. Temos casas de acolhimento, de abrigamento, leis que dão prioridade e atendimento especializado para mulheres vítimas de violência. Criar lei não adianta. O problema não é falta de lei. A questão é a má execução das leis. Precisamos, por exemplo, de celeridade”, afirma Lourdes.

 

Educação

Outro caminho destacado pelas especialistas é a inserção do debate sobre a violência contra a mulher nas escolas. De acordo com a criadora do primeiro doutorado em estudos feministas do Brasil, Tânia Navarro Swain, a questão só vai mudar quando se atuar na base, no início da educação. “Enquanto não houver um sistema de educação do homem, desde pequenininho, que o ensine que a mulher não existe para servi-lo, não há como mudar essa realidade. É uma questão de formação social”, comenta. Tânia lamenta que tenha havido uma deturpação das discussões de gênero no país. “Hoje em dia, a análise de gênero foi transformada em uma apologia ao homossexualismo e é uma deturpação total e absurda. A mulher está dentro da questão de gênero e temos que falar sobre isso”, acrescenta.

Procurado para esclarecer diversos pontos da portaria de criação do Núcleo de Proteção à Mulher, a Assessoria de Comunicação do Ministério da Justiça e Cidadania se limitou a afirmar que os prazos para a implementação das medidas não foram definidos e que o órgão será composto pela Secretaria Nacional de Segurança Pública, pela Secretaria de Direitos Humanos e pela Secretaria de Políticas para as Mulheres “em virtude da transversalidade das matérias e da necessidade de cooperação das Secretarias de Segurança Pública de cada um dos estados”.

 

PORTARIA Nº 586, DE 1º DE JUNHO DE 2016 (trechos destacados)

O MINISTRO DE ESTADO DA JUSTIÇA E CIDADANIA, no uso de suas atribuições, e considerado o disposto nos incisos I, II, III, V, VI do art. 13 do Decreto nº 8.668, de 11 de fevereiro de 2016, resolve:

Art. 1º Fica instituído o Núcleo de Proteção à Mulher no âmbito do Ministério da Justiça e Cidadania, com as seguintes competências:

(...)II - elaborar, em conjunto com a Secretaria de Assuntos Legislativos, propostas de legislação em assuntos de segurança pública de proteção à mulher;

(...)V - estimular e propor aos órgãos federais, estaduais, distritais e municipais a elaboração de planos e programas integrados de segurança pública e de ações sociais de prevenção da violência e da criminalidade contra a mulher.

(...)Art. 2º - São medidas que deverão ser levadas a efeito pelo Núcleo de Proteção à Mulher:

I - identificação conjunta dos locais de incidência dos crimes relacionados à violência doméstica e contra a mulher, inclusive homicídios daí decorrentes;

(...) III - elaboração, em conjunto com as Secretarias Estaduais de Segurança Pública, de protocolo uniforme de atendimento às mulheres vítimas de violência;

(...) Art. 4º Fica criado conselho para acompanhamento da implementação do disposto nesta Portaria com a seguinte composição:

I - Secretário Especial de Políticas para as Mulheres, do Ministério da Justiça e Cidadania;

II - Secretário Especial de Direitos Humanos, do Ministério da Justiça e Cidadania;

III - Secretário Nacional de Segurança Pública, do Ministério da Justiça e Cidadania;

IV - Secretário de Assuntos Legislativos, do Ministério da Justiça e Cidadania;

V - 3 (três) Secretários Estaduais de Segurança Pública indicados pelo Colégio de Secretários Estaduais de Segurança Pública;

VI - 1 (um) Delegado de Polícia Federal indicado pelo Diretor-Geral do Departamento de Polícia Federal; e

VII - 1 (um) representante da Entidade das Nações Unidas para a Igualdade de Gênero e o Empoderamento das Mulheres - ONU Mulheres.

 

Ponto a ponto

Confira abaixo alguns trechos da Portaria nº 586, de 1º de junho de 2016, que instituiu o  Núcleo de Proteção à Mulher e as iniciativas existentes que contemplam os objetivos, segundo especialistas:

 

A Secretaria de Assuntos Legislativos é muito atuante em proposições dentro de uma perspectiva de gênero, entre elas, o fim das revistas vexatórias em presídios, a Lei do Feminicídio e a recente proibição de parto de detentas com algemas.

Em março de 2013, o governo federal lançou o programa “Mulher, Viver sem Violência”. De acordo com a SPM, ele integra e amplia os serviços públicos existentes voltados às mulheres em situação de violência, mediante a articulação dos atendimentos especializados no âmbito da saúde, da Justiça, da segurança pública, da rede socioassistencial e da promoção da autonomia financeira. Vinte seis unidades da Federação, exceto Pernambuco, aderiram à iniciativa.

Com o incentivo do governo federal e de entidades como a Unesco, o sociólogo Julio Jacobo Waiselfisz, coordenador da área de estudos sobre Violência da Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (Flasco), publica anualmente o Mapa da Violência. Com edições ininteruptas desde 2004, a publicação detalha dados de violência doméstica e homicídios contra a mulher por estados e municípios. No ano passado, o Mapa mostrou que o Brasil é o quinto país do mundo onde mais se matam mulheres.

Criado em 1985, o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM), vinculado ao Ministério da Justiça, existe para promover políticas para a mulher no país, em âmbito político, econômico e cultural. O CNDM tem representação governamental, de redes e articulações feministas, organizações de caráter sindical, associativa, entidades de classes e jurídicas que atuam na promoção dos direitos das mulheres. Em cada unidade da Federação, conselhos estaduais e municipais das mulheres atuam em conjunto com a coordenação nacional.

O Ligue 180, canal de atendimento e orientação sobre direitos e serviços públicos para a mulher, funciona no país desde 2005. Reconhecido internacionalmente, o programa funciona em todo o Brasil e em 16 países e recebe, em média, 179 denúncias de violência contra a mulher por dia. O canal é articulado com as secretarias estaduais de Segurança Pública e o Ministério Público de cada estado.