Correio braziliense, n. 19366, 03/06/2016. Opinião, p. 11

Lei dos 60 dias: não basta ter a legislação

Por: Maira Caleffi

 

Na semana passada, completou 3 anos de vigência a Lei dos 60 dias (12.732/12), que determina que pacientes com câncer tenham o direito de iniciar o tratamento pelo Sistema Único de Saúde (SUS) em, no máximo, 60 dias após o diagnóstico. A conquista é extremamente importante, já que a alta taxa de mortalidade por câncer no Brasil está diretamente associada à demora no início do tratamento. Mas o que era para ser uma boa notícia, ainda não se converteu em motivos para comemorar. Existe hoje grande dificuldade em acompanhar o status de implementação da lei no país e os pacientes continuam denunciando que ela não tem sido cumprida, ou seja, não saiu do papel.

Em 2014, a Federação Brasileira de Instituições Filantrópicas de Apoio à Saúde da Mama (Femama) conduziu uma pesquisa que apontou a necessidade de maior aplicação de recursos, a definição de um plano de ação, a plena implantação do Sistema de Informação do Câncer (Siscan), oferecendo registros oficiais do acompanhamento ao paciente e dados confiáveis e representativos do cenário da doença no país, e o treinamento para que os profissionais da saúde entendam a importância de operar corretamente o sistema, fundamental para acompanhamento da aplicação da lei.

Entre 2013 e 2014, apenas 27% dos municípios brasileiros utilizavam a ferramenta. Em um ano, esse número subiu apenas cinco pontos percentuais, atingindo um total de 32%, segundo dados obtidos em reunião da Comissão de Assuntos Sociais no último mês de outubro. Ainda assim, desses, apenas 50% dos tratamentos iniciaram dentro do prazo de 60 dias, conforme previsto em lei. Além dessa baixa inclusão de dados, esses ainda não são de conhecimento público, portanto, não permitem que a aplicação da lei seja monitorada pela sociedade civil.

De acordo com estimativas do Instituto Nacional do Câncer (Inca), são esperados quase 600 mil novos casos de câncer no Brasil somente em 2016, número que vem crescendo consistentemente ao longo dos anos. Por si só, esse já é um cenário alarmante. Somando-se a incapacidade do sistema público de saúde em garantir o prazo de 60 dias para o início do tratamento de câncer, os grupos de pacientes e profissionais de saúde não contam com um sistema de dados que permita o acompanhamento dos casos diagnosticados e da demora em fazer o diagnóstico. Esses fatores têm contribuído para os altíssimos índices de mortalidade por câncer no país.

O cumprimento da Lei dos 60 dias esbarra também em atrasos no repasse de verbas estaduais e municipais destinadas à realização do tratamento de câncer, desrespeitando os direitos dos pacientes. No mês passado, o Centro de Oncologia da cidade de Mossoró (RN) interrompeu os tratamentos oncológicos por falta de recursos financeiros. O centro é a única unidade cadastrada pelo SUS para realização de tratamento de câncer na região, 64 cidades dependem desses serviços e, por conta do atraso nos repasses, pelo menos 700 pessoas tiveram o tratamento de quimioterapia interrompido. Se faltam recursos para atender os pacientes já diagnosticados e em tratamento, provavelmente os novos casos diagnosticados tampouco terão acesso.

O caso se repete em Santa Catarina, onde o Centro de Pesquisas Oncológicas — referência no tratamento de câncer na capital — sofre também com falta de repasse de verbas, afetando os mais de 5 mil atendimentos realizados mensalmente. Mesmo drama vivido pelo município de Nova Iguaçu (RJ), que suspendeu as sessões de quimioterapia oferecidas no Instituto Oncológico da cidade devido à ausência de verbas da Secretaria de Saúde do estado, deixando cerca de 1.200 pacientes sem atendimento.

Casos como esses são muitos no país. A falta de investimentos denota não apenas descaso com a população, mas um desrespeito aos direitos dos cidadãos, garantidos por lei e pela Constituição. Só poderemos comemorar a Lei dos 60 dias, de fato, quando os pacientes diagnosticados com câncer, de qualquer região do Brasil, realmente estiverem sendo tratados e registrados no Siscan em até 60 dias após o diagnóstico. Para isso, é necessário que o poder público aumente os investimentos para agilizar a implantação do Siscan em âmbito nacional, forneça capacitação aos profissionais de saúde para que entendam a importância da operação concreta do sistema e modernize os equipamentos disponíveis no SUS. Cabe a nós, como cidadãos e sociedade civil organizada, manter uma atitude vigilante e participativa sempre para garantir que boas ideias se transformem em leis e que essas se traduzam em realidade.

 

 

MAIRA CALEFFI

Médica mastologista e presidente voluntária da Federação Brasileira de Instituições Filantrópicas de Apoio à Saúde da Mama (Femama)