Jogos Olímpicos e heróis

 
02/08/2016
Ronaldo Helal

 

As narrativas de vitória em torno de nossos atletas olímpicos diferem das de nossos ídolos futebolísticos. Quando falamos de heróis do futebol, geralmente sublinhamos o êxito por meio de atributos como genialidade e malandragem. E gostamos de acreditar que os craques nascem prontos. Neste imaginário construído, só nós sabemos jogar bonito. Quando os outros o fazem, estariam nos imitando. Haveria nesse pensamento uma pitada de soberba?

Quando surge uma biografia como a de Zico, ídolo consagrado e exaltado até os dias de hoje, na qual ele mesmo ressalta o esforço e a disciplina para se atingir o apogeu, a narrativa midiática parece entrar em crise. E isto porque não consegue conceber um craque a partir também do empenho, mas somente da bênção inata de seus pés. A mídia parece ter dificuldades em conciliar o empenho ao talento. Onde destaca a genialidade, não valoriza o esforço. Onde sublinha o trabalho de longa jornada, não toca na aptidão inata. A seleção de 1970, por exemplo, é vista como expressão genuína do nosso talento e, equivocadamente, exposta como uma seleção que não precisava de treinamentos e suportes táticos. O cuidadoso trabalho de pesquisa de Marco Antônio Santoro e Antônio Jorge Gonçalves Soares em “A memória da Copa de 70” demonstra isso. Sabemos, contudo, que os grandes ídolos do esporte sempre combinaram esses elementos. Da junção de suas habilidades peculiares com uma disciplina de trabalho, que lapida essas mesmas habilidades, nasceria um craque.

No entanto, os veículos de comunicação tendem a suspender essa vertente predominante no universo do futebol quando se depara com os esportes olímpicos. Não há como tratar os atletas brasileiros do badminton como nascidos para aquele esporte, ou destacar a malandragem dos fundistas brasileiros ou, ainda, a malícia dos nadadores, por exemplo. O tratamento da imprensa sobre os êxitos dos atletas nos Jogos Olímpicos versa sobre o esforço, a disciplina e a superação, além do talento, para se chegar à vitória. O que parece ser uma narrativa muito mais próxima da realidade de qualquer esporte, inclusive do futebol.

Só que esses heróis olímpicos não se tornam heróis no longo prazo. Primeiro, porque o futebol ocupa quase todo o espaço esportivo na mídia. Ou seja, a maior parte dos heróis dos Jogos tende a ser parcialmente esquecida, após o seu término.

A segunda razão, intimamente ligada à primeira, é que, infelizmente, os esportes olímpicos não fazem parte da cultura esportiva brasileira. À exceção de alguns poucos, como o basquete e o vôlei, o brasileiro não os acompanha. Talvez porque a mídia não os cubra ou porque, provavelmente, não depositamos nossos sentimentos em atletas isolados, mas sim em entidades esportivas, os clubes. Fica claro, portanto, que só existe herói se mídia e público o reconhecerem como tal. Se o esquecerem, com o tempo, perderão a aura heroica. Ficarão perdidos num passado sempre distante, até serem lembrados nos próximos Jogos. Heróis de quatro em quatro anos.

Em uma análise sobre a cobertura da imprensa nos Jogos Pan-Americanos de 2007, realizada em parceria com meus então orientandos de pós-graduação na Uerj Alvaro do Cabo e Ronaldo Marques, demonstramos como a construção de ídolos no campo dos esportes olímpicos utiliza-se de uma lógica distinta da formação dos heróis futebolísticos. Nos Jogos, valoriza-se sobremaneira a superação e relega-se a um plano secundário a genialidade isolada.

 

O globo, n. 30311, 02/08/2016. Artigos, p. 13