Enfrentar distorções

 

01/08/2016

 

Por mais circunstanciais que sejam as crises, os efeitos delas decorrentes podem ter consequências pontuais, tratáveis no âmbito de ações mais imediatas, ou de longo prazo, mais duradouras — se não, permanentes. Produzem, neste caso, contenciosos que precisam ser enfrentados com soluções estruturais. A atual crise fiscal do Estado brasileiro, por sua dimensão — a mais grave da História do país, pelo menos desde o início da República —, não passará sem que sejam resolvidas demandas nestes dois aspectos.

 

A urgência da crise pede ações imediatas. Ao mesmo tempo, pelo fato de a debacle fiscal (gerada na fase final dos últimos 13 anos, de domínio lulopetista sobre o aparelho de Estado) se assentar também em questões crônicas, não resolvidas a seu tempo, superá-la implica iniciativas que livrem o país de antigas distorções, agravadas pela falta de dinheiro.

É com esse pano de fundo que se deve travar o debate sobre o fim do ensino gratuito nas universidades públicas. Antes de tudo, é preciso encarar a questão sem as paixões que levam ao desvio do verdadeiro foco — como associar a cobrança de mensalidades a uma alegada “privatização” do ensino nas unidades de nível superior. O que se pretende com esse princípio, de resto uma forma de corrigir distorções sociais na ponta do funil de acesso às faculdades públicas, não é transferir a administração das unidades para a iniciativa privada. Por correto e justo, o que se defende é ressarcir o Estado — por extensão, a sociedade — pelo serviço que presta a quem pode pagar.

A crise mostra elevados déficits fiscais, frutos de acentuada queda de receitas, em todos os níveis da administração pública, o que se contrapõe a despesas engessadas por lei. O orçamento das universidades, federais e estaduais, mantidas pelo repasse de impostos, é impactado diretamente por esse colapso. A USP, situada no topo do ranking das unidades de ensino superior do país, é o exemplo mais notório. Ela recebe 5% do ICMS que entra no caixa do governo paulista; e com a arrecadação em baixa, caem os repasses.

A isso junta-se outra circunstância — a má gestão da universidade. De forma geral, esse não é um problema restrito à USP; é o panorama nas principais universidades públicas.

Crise à parte, manter a gratuidade, diferentemente do que reza a cartilha de quem a defende, corresponde a preservar um instrumento de deformação social. Uma pesquisa da “Folha de S.Paulo” mostrou que 60% dos alunos da USP têm condições de pagar mensalidades na faixa do que é cobrado nas unidades privadas. É um fenômeno óbvio: estudantes de famílias de renda mais alta cursam, no ensino médio, escolas particulares com melhor nível de ensino, mas caras. Entram, portanto, na disputa por uma vaga na faculdade mais bem preparados que os candidatos de faixas de renda menores.

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Quem paga o pato?

 
01/08/2016
Tatiana Roque
 
 
Discutir o ensino superior público e gratuito exige uma análise das universidades federais. Essas universidades possuem mecanismos expressivos de democratização do acesso, pois metade das vagas, pela lei de cotas, é destinada a estudantes egressos de escolas públicas. Além disso, há vagas reservadas para quem tem renda per capita de até 1,5 salário mínimo. Detalhando:

Um quarto dos alunos vem da escola pública e possui renda per capita inferior a 1.320 reais;

Um quarto não passa por corte de renda, mas vem também da escola pública (desses dois primeiros grupos, uma parte é de negros, pardos ou índios).

O que significaria, em números, cobrar mensalidades? Primeiro, calculamos o valor arrecadado cobrando-se uma mensalidade de R$ 2 mil da metade não cotista. Em 2014, a UFRJ tinha 43.400 alunos de graduação. Se metade deles pagasse, daria 520 milhões no ano, menos de um terço do orçamento da universidade (aproximadamente R$ 1,7 bilhão).

E qual a renda dos alunos supostamente pagantes? Um estudo publicado pela Associação dos Dirigentes das Instituições Federais em 2011, antes das cotas, mostra que 85% dos estudantes das federais tinham renda média familiar de até 10 salários mínimos e 70%, de até 6 salários. Hoje, o percentual nessas faixas de renda deve ser, no mínimo, parecido. Há, portanto, uma parcela considerável de estudantes não cotistas com renda familiar média inferior a 8 mil reais. Cobrar uma mensalidade de 2 mil significa, na prática, excluir essas pessoas da universidade pública. Diante desses números, só podemos concluir que a cobrança ou é irrelevante ou é excludente.

A universidade vem se tornando um instrumento cada vez mais efetivo de mobilidade social. O estudo citado mostra que 70% dos alunos das federais, quando formados, teriam um nível de escolaridade superior ao de seus pais. A universidade pública, além disso, é uma instituição de pesquisa, por isso demanda investimentos. “Aqui se ensina porque se pesquisa”, dizia Carlos Chagas, pioneiro em nosso projeto de desenvolvimento, que considera educação e ciência estratégicas. Vale a pena arriscar esse patrimônio por tão pouco?

Numa sociedade justa, quem possui maior renda paga mais pelo bem comum, ou seja, paga mais impostos. No Brasil, só os pobres pagam muito imposto. Isso porque mais da metade da arrecadação provém de tributos sobre bens e serviços, com baixa incidência sobre patrimônio e rendimentos elevados. Um estudo do Ipea mostrou que um imposto progressivo sobre lucros e dividendos, atualmente isentos, permitiria arrecadar 70 bilhões por ano, o que pagaria mais de 40 universidades do tamanho da UFRJ.

 

O globo, n. 30310, 01/08/2016. Opinião, p. 12