Título: Agiotagem na China é nova ameaça ao mundo
Autor: Ribas, Sílvio
Fonte: Correio Braziliense, 13/11/2011, Economia, p. 18

Onda de calotes pode implodir sistema paralelo de crédito e contaminar o mercado imobiliário da segunda maior economia do planeta

A crise que se arrasta desde 2008 e empurra o mundo para a recessão trouxe à tona um dos maiores e mais dramáticos riscos para a economia chinesa: a existência de um mercado paralelo de crédito (shadow banking), que movimenta, segundo estudos do Banco Popular da China, entre US$ 1 trilhão e US$ 10 trilhões, a juros de pelo menos 7% ao mês. Inerte, o governo de Pequim assiste a um grave quadro de calote, marcado pela violência de mafiosos contra consumidores e pequenos empresários e por sucessivos casos de suicídio.

Mesmo em uma nação comunista, como a China, país dono do segundo maior Produto Interno Bruto (PIB) do planeta, a agiotagem proliferou. E o gigantismo atingido por esse sistema financeiro marginal acabou sendo estimulado pelo próprio governo. Ao ter de aumentar as taxas de juros e impor restrições a empréstimos e financiamentos no mercado bancário tradicional para conter o consumo e controlar a inflação, incentivou trabalhadores e empresários que já estavam endividados a migrarem para o shadow banking. O resultado foi uma bolha de inadimplência que pode engolfar, inclusive, o mercado imobiliário chinês e pôr a pique o crescimento econômico no qual o mundo está se fiando para evitar uma crise pior que a liderada atualmente pela Europa.

Para Fábio Silveira, economista-chefe da RC Consultores, a agiotagem é prática antiga e universal, mas assusta ao escapar das mãos de um Estado forte e ganhar dimensões chinesas. "O governo comunista foi surpreendido com a evolução inesperada de uma distorção já conhecida. Agora, terá de intervir para evitar a barbárie", diz. Embora os números não sejam transparentes, ele teme que a bolha do crédito na China dobre de tamanho se confirmada uma desaceleração mais acentuada do PIB do país.

O imbróglio se repete com igual tensão nas grandes empresas da mais importante nação emergente. O arrocho do crédito formal também as empurrou para o sistema paralelo, formado por agências de seguros e fundos de investimento de altíssimo risco (hedge funds). Trata-se da exportação para o mercado chinês de uma fragilidade dos Estados Unidos que, na última década, derrubou a economia norte-americana e quase levou o mundo junto.

A crise do crédito atinge toda a China, onde a concentração do sistema financeiro na esfera estatal criou a dependência das empresas privadas do financiamento pirata — economistas estimam que esse sistema informal gire o equivalente a até 40% dos empréstimos totais no país. O mais assustador, porém, é o fato de o mercado paralelo estar se expandindo ao mesmo tempo em que o governo corre para socorrer os quatro maiores bancos públicos do país, quebrados devido à disparada da inadimplência.

Enquanto se discute se a China terá um "pouso suave" ou "pouso forçado"(metáforas usadas pelos analistas para se referir a uma desaceleração ordenada ou mais brusca), agentes informais continuam tomando recursos nos bancos tradicionais a 1% ao mês para emprestar a 7% ou mais. Mais do que as pessoas físicas que estão nas mãos dos agiotas, são as pequenas empresas penduradas o grande nó a ser desatado. Por uma simples razão: elas respondem por 80% dos empregos chineses. Se fecharem as portas, uma insatisfação popular que já é latente tende a atingir seu ápice.

Risco sistêmico No mais recente encontro de cúpula do G-20, grupo das 20 maiores economias do mundo, em Cannes, na França, o aumento da regulação das instituições financeiras paralelas foi discutido, mas acabou ficando em segundo plano diante do agravamento das tensões na Zona do Euro. "O G-20 tratou só da lista de bancos de risco sistêmico e adiou, de novo, o urgente debate sobre a necessidade de criar controles mais amplos do mercado de crédito", afirma a economista Maryse Farhi, da Universidade de Campinas (Unicamp).

Segundo ela, a expansão do crédito na China já produziu uma evidente bolha imobiliária, que desperta novas incertezas. "Quando o crédito se contraiu, restou ao chinês apelar para os esquemas de fundo de quintal. Tal como foi nos EUA, a história se repete com outros contornos graças ao excesso de dinheiro em circulação misturado à desregulamentação", conclui Maryse. Analistas mais pessimistas veem no shadow banking da China uma ameaça para a economia global maior que a crise fiscal da Zona do Euro.

US$ 10 trilhões Empréstimos totais que podem ter sido concedidos no sistema financeiro pirata chinês