Título: Acerto de contas
Autor: Craveiro, Rodrigo
Fonte: Correio Braziliense, 28/10/2011, Mundo, p. 16

Deputados uruguaios vetam a prescrição aos crimes da ditadura e Justiça argentina condena repressores à pena perpétua. Impunidade marca Brasil e Chile

Somente agora países sul-americanos começam a tratar as feridas abertas décadas atrás e a desafiar o que por muitos anos foi considerado um tabu. Duas decisões, do Judiciário argentino e do Legislativo uruguaio, abrem as portas para a punição dos agentes da Operação Condor — uma aliança político-militar dos regimes militares do Cone Sul para reprimir opositores e assassinar líderes da esquerda, entre as décadas de 1970 e 1980. Às 2h14 de ontem, a Câmara dos Deputados do Uruguai aprovou um projeto de lei que classifica de lesa humanidade os crimes cometidos durante a ditadura (1973-1985) e anula a prescrição dos delitos. O presidente José Mujica confirmou que sancionará a nova lei e a enviará à Suprema Corte de Justiça. "A consciência popular está amadurecendo, e esse é um processo pelo qual temos que passar", declarou o mandatário.

Na outra margem do Rio da Prata, a 180km de Montevidéu, familiares de desaparecidos políticos (Leia as Duas Perguntas Para) celebravam a histórica condenação de 12 repressores à prisão perpétua, incluindo os ex-oficiais Alfredo Astíz (o "anjo da morte"), Jorge "El Tigre" Acosta, Antonio Pernías e Ricardo Cavallo. Todos integravam a emblemática Escola de Mecânica da Armada (Esma), um centro clandestino de detenção e tortura. Após a leitura do veredicto, ativistas de direitos humanos gritaram: "Vai acontecer com os nazistas, onde forem iremos buscá-los". Astíz é acusado de sequestros, tortura e homicídio.

Roberto Gargarella, professor de direito da Universidad de Buenos Aires, admite que a Argentina desenvolveu, em meio a percalços, uma política de julgamento dos crimes da ditadura. "O primeiro passo foi dado durante o governo de Raúl Alfonsín (1983-1989), que inaugurou essa política. Submetido a pressões intensas, ele bloqueou a possibilidade de seguir com as punições e criou outra saída legal", lembra, por e-mail. Segundo Gargarella, as sentenças da noite de quarta-feira foram consequência do ativismo social. "Indivíduos, grupos e organizações mostraram uma rejeição às políticas de anistia. Isso é muito importante e, talvez, a marca mais relevante da recente história argentina."

O advogado uruguaio Martin Risso Ferrand, diretor do Departamento de Direito Constitucional e de Direitos Humanos da Universidad Católica del Uruguay, explica ao Correio que a decisão em seu país atendeu a uma exigência da Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH). O organismo declarou a nulidade das soluções de anistia e ordenou o julgamento dos responsáveis. "Os juízes aplicavam a lei de caducidade — uma espécie de anistia — e, por isso, não se punia os culpados. A sentença da CIDH obriga a reabertura das investigações."

Anistia Se o Uruguai e a Argentina acertam as contas com o passado, o Chile e o Brasil dão passos trôpegos. O historiador chileno Alberto Harambour Ross, professor da Universidad Diego Portales (em Santiago), afirma que o país não derrogou a Lei de Anistia de 1978. "A Suprema Corte tem aplicado, em certos casos, o critério de imprescritibilidade. Ante o acúmulo de condenações com penas baixas, as cúpulas dos aparatos repressivos da ditadura cumprem as sentenças em recintos especiais e em prisões sob a administração do Exército", comenta, por e-mail. Pelo menos 80 criminosos estão atrás das "grades". Apesar de oficiais de organismos especializados — como a Direção de Inteligência Nacional (Dina) e a Central Nacional de Informações (CNI) — terem sido processados, a impunidade ronda as Força Armadas.

Na noite de anteontem, o Senado brasileiro aprovou a criação da Comissão da Verdade. A entidade, formada por sete integrantes escolhidos pela presidente, Dilma Rousseff, poderá investigar violações durante a ditadura. No entanto, terá um prazo de dois anos para funcionar e não poderá punir os criminosos. Alberto Harambour aposta que a dinâmica dos vizinhos extinguirá o poder dos serviços de inteligência e impulsionará o Brasil a superar o simbolismo da luta contra a ditadura. "Na medida em que o Brasil avançar rumo ao esclarecimento da verdade e à justiça sobre o passado, será possível construir uma sociedade mais justa."