Correio braziliense, n. 19453, 29/08/2016. Economia, p. 7

Irresponsabilidade fiscal

Mesmo que a renegociação das dívidas dos estados seja aprovada pelo Congresso, a situação continuará dramática, com risco de calote

Por: Rosana Hessel

 

A renegociação das dívidas dos estados sequer foi aprovada pelo Congresso e os governadores já estão passando o pires novamente em Brasília. As romarias têm tomado parte das agendas do presidente interino, Michel Temer, e do ministro da Fazenda, Henrique Meirelles. Mesmo com todos os argumentos apresentados, de que não há sequer dinheiro para a compra de comida e para o pagamento de despesas básicas, os governadores não vêm conseguindo sensibilizar os interlocutores. O risco de calote, portanto, aumentou.

Nas palavras do governador de Goiás, Marconi Perillo, a situação é dramática. Ele diz que 11 estados estão prestes a quebrar. Para o Palácio do Planalto e a Fazenda, porém, tudo não passa de retórica. A prioridade, dizem Temer e Meirelles, é aprovar a renegociação das dívidas, que dará alívio de R$ 50 bilhões ao caixa de todas as unidades da federação. Os dois afirmam ainda que já passou da hora de os governadores adotarem a responsabilidade fiscal. O país não comporta mais gastos exagerados, principalmente com pessoal.

O projeto de renegociação das dívidas está parado na Câmara. Ainda depende da votação de quatro destaques para pular para o Senado. Na visão do governo, esse projeto é prioritário e precisa avançar rapidamente logo após a efetivação do impeachment definitivo de Dilma Rousseff. “Quando setembro chegar, a bomba dos estados vai estourar. Dilma pode sair, mas o problema continuará. A situação é muito ruim e parece que o Congresso não está consciente do tamanho do problema. O governo terá que ser muito firme para controlar a crise que está por vir”, alerta a economista Selene Nunes, doutoranda da Universidade de Brasília (UnB), que participou da elaboração da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF).

O problema, acrescenta Selene, está no descompasso entre as receitas, que têm caído por causa da recessão, e as despesas, que não param de crescer. “O maior problema dos estados são as despesas que aumentam o endividamento. O refinanciamento de débitos não resolverá o problema, só induzirá a mais desajuste. É como apagar fogo com gasolina”, resume.

 

Descalabro

Para Raul Velloso, especialista em contas públicas, a renegociação da dívida dos estados, em alguns casos, não será suficiente para tapar todo o buraco. “Os governadores não têm como fazer os ajustes a curto prazo, porque o grosso das despesas é com pessoal e o que os estados arrecadam mal dá para cobrir esses gastos”, assinala. Segundo ele, os estados estão atravessando uma situação caótica e o rombo que se vê hoje acabará sendo repassado para a União.

“É difícil dizer como esse problema será resolvido. Cada estado será um caso diferente”, frisa Velloso. Que enfatiza: “Essa situação dramática é resultado da combinação de duas coisas: da queda brutal da arrecadação, que é conjuntural, com uma política equivocada que produziu aumentos excessivos nos salários e no quadro de pessoal. Isso se transformou em um problema estrutural, que não se resolverá tão cedo”.

Alessandra Ribeiro, da Tendências Consultoria, vai além: “É impossível pensar numa solução com os gastos de pessoal comendo mais de 50% das receitas líquidas dos estados”. Ela ressalta que as despesas dos estados com as folhas de salários e encargos cresceram 7,9% ao ano em termos reais entre 2009 e 2015. “O risco de os estados deixarem de pagar os funcionários existe, apesar de a economia apresentar sinais de melhora nesse segundo semestre. Será preciso um crescimento extraordinário para salvar a lavoura”, frisa.

Na opinião de Marcel Caparoz, economista da RC Consultores, o desarranjo das contas dos estados tende a se acentuar até 2017. “Há uma percepção do problema, mas não vemos os estados se mexendo para apresentar leis mais rígidas que as atuais a fim de melhorar o quadro fiscal. Vemos que os gastos com pessoal continuam acima do previsto em lei e os aumentos concedidos no passado, mesmo no meio da crise, dificultam uma reversão”, lamenta. Ele diz que, das 27 unidades da federação, o Rio de Janeiro é o que apresenta o quadro de maior descalabro.

 

Distrito Federal

As queixas estão disseminadas. A preocupação diária do secretário de Fazenda do Distrito Federal, João Fleury, é como pagar a conta do dia seguinte. “Quando rodamos a folha de pessoal, consigo dormir tranquilo. Mas, no outro dia, já começo a ficar nervoso com a do próximo mês”, confessa.

Fleury reconhece que o quadro atual é resultado de uma política equivocada de governos anteriores que inflou as despesas com pessoal quando a receita crescia acima da inflação. Agora, com a queda na arrecadação, está cada vez mais difícil fechar as contas, mesmo evitando ao máximo conceder aumentos salariais, apesar das pressões do funcionalismo. “Mesmo se eu não fizer nada, a folha tem crescimento vegetativo de 3,5% ao ano só com os benefícios previstos. São R$ 800 milhões que precisam ser cobertos a cada ano enquanto a receita tributária não cresce no mesmo ritmo”, lamenta.

 

Bomba relógio

Nos últimos anos, as principais unidades da Federação deram aumentos de salários e incharam o quadro de pessoal. Agora, sofrem com queda da arrecadação

 

Deterioração

Veja como está a relação entre a receita entre a dívida corrente líquida e a receita corrente líquida. As unidades da Federação que estavam ruim continuam na mesma e quem estava melhor, piorou

 

Estados 2000          2010           2011           2012          2013           2014            2015

AC    1,04    0,54    0,50    0,58    0,69    0,74    0,97

AL    2,23    1,62    1,48    1,50    1,46    1,54    1,70

AM    1,00    0,27    0,19    0,15    0,22    0,31    0,05

AP    0,05    0,18    0,12    0,18    0,26    0,41    0,27

BA    1,64    0,52    0,46    0,49    0,47    0,40    0,59

CE    0,87    0,28    0,29    0,28    0,29    0,42    0,63

DF    0,36    0,18    0,16    0,10    0,16    0,21    0,25

ES    0,98    0,17    0,14    0,15    0,21    0,27    0,31

GO    3,13    1,30    1,01    1,02    0,92    0,90    0,99

MA    2,58    0,64    0,47    0,41    0,38    0,46    0,60

MG    1,41    1,82    1,82    1,75    1,83    1,79    1,99

MS    3,10    1,20    1,13    1,05    1,02    0,98    0,89

MT    2,50    0,55    0,40    0,30    0,35    0,42    0,45

PA    0,57    0,29    0,19    0,11    0,10    0,10    0,12

PB    1,53    0,36    0,25    0,26    0,27    0,37    0,41

PE    0,86    0,38    0,39    0,46    0,53    0,58    0,62

PI    1,73    0,54    0,57    0,50    0,59    0,61    0,57

PR    1,29    0,89    0,76    0,60    0,60    0,58    0,49

RJ    2,07    1,56    1,46    1,65    1,54    1,78    1,98

RN    0,71    0,20    0,13    0,11    0,15    0,16    0,09

RO    1,11    0,54    0,50    0,45    0,62    0,62    0,61

RR    0,31    0,04    -0,10    0,20    0,37    0,18    0,12

RS    2,66    2,14    2,14    2,18    2,09    2,09    2,27

SC    1,83    0,63    0,46    0,41    0,48    0,45    0,53

SE    0,88    0,33    0,43    0,53    0,55    0,57    0,69

SP    1,93    1,53    1,46    1,54    1,42    1,48    1,68

TO    0,35    0,16     0,21    0,21    0,26    0,33    0,40

 

OBS: Os dados referentes a 31/12/2015 foram extraídos exclusivamente dos Relatórios de Gestão Fiscal do 3º Quadrimestre de 2015. Já os dados referentes aos  períodos anteriores não consideram eventuais alterações.

 

Evolução das contas estaduais (variação em %)

Enquanto a receita e as transferências encolhem, os gastos com pessoal e encargos sociais continuam crescendo

Indicadores    2010    2011    2012    2013    2014        2015

Receita corrente      8,8        5,6      2,7      4,2     1,9      -5,7

Receita tributária     10,3        4,5      4,4      5,0     0,9      -6,0

ICMS     10,9        4,4      3,8      4,3     0,3      -7,8

Transferências correntes       5,1        9,6    -2,5    -2,5     2,4      -3,0

Despesa corrente       7,8        5,5      5,8      4,5     2,5      -3,3

Pessoal e encargos sociais      8,3        7,1     11,9    13,5     4,7        1,6

Despesas de capital    14,1    -12,6       3,3    20,0    -5,9    -30,0

Investimentos      1,8    -27,4       7,7     17,7      6,1    -43,7

 

Fontes: Selene Peres Nunes, Tesouro Nacional, Tendências Consultoria,

RC Consultores e Secretaria de Fazenda do Distrito Federal

 

Ranking dos endividados

No primeiro quadrimestre de 2016, a relação entre a dívida e a receita corrente ficou da seguinte forma

Estados    Em %

RN        7,54

PA        9,14

RR      16,62

DF      24,69

ES      26,03

AP      31,09

PB      35,07

TO      35,11

MT      39,39

PR      40,14

SC      41,50

PI      45,91

AM      46,06

MA      47,18

CE      49,77

BA      54,35

PE      57,64

RO      58,05

SE      64,65

GO      76,15

AC      86,46

SP     163,22

AL     164,86

MG     187,78

RJ     191,59

RS     217,58

 

Conta salgada

Os gastos com pessoal são os mais preocupantes. Veja a relação da folha de salários com as despesas

 

Estados    Em %

RJ     39,79

AP     42,65

ES     43,51

CE     44,26

PR     44,28

MA     44,60

RO     44,61

SP     46,37

PA     46,52

SC     46,73

RR     46,88

DF     47,08

PE     47,13

PI     47,22

RS     47,51

MG     47,71

GO    48,06

BA    48,28

AL    48,55

AM    48,89

MT    50,46

AC    50,59

RN    51,45

PB    52,17

TO    52,66

 

Para entender melhor

De acordo com dados do Tesouro Nacional, os limites percentuais da relação dívida corrente líquida dos estados, do Distrito Federal e dos municípios estão previstos na Resolução do Senado Federal nº 40, de 2001, no caso de estados e do DF, a dívida não pode passar de duas vezes a corrente líquida.

 

Recorte do Distrito Federal

Desde que foi criada, a capital federal não consegue se manter sozinha e precisa de repasses da União, como ocorre com os estados do Norte e do Nordeste. Somente a folha de salários consome R$ 27 bilhões por ano, bem mais que as receitas com tributos, que gira em torno de R$ 15,5 bilhões

 

Evolução da arrecadação (em R$ bilhões)

Dados de janeiro a junho corrigidos pela inflação

Indicadores    2015    2016    Variação real (em %)

Receita tributária total    8,953    8,791    -1,9

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Boicote do PMDB

 

Michel Temer já se prepara para vestir a faixa presidencial, mas o partido dele, o PMDB, vem se movimentando para tornar a trajetória do governo mais complicada. Parte relevante da legenda está disposta a dificultar o andamento do ajuste fiscal elaborado pelo ministro da Fazenda, Henrique Meirelles. Com as eleições municipais se aproximando, muitos peemedebistas não querem nem ouvir falar na aprovação da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que limita o aumento de gastos à inflação do ano anterior. Alegam que o discurso de que o governo pode cortar despesas com saúde e educação tende a jogar contra candidatos do partido com chances de saírem vitoriosos das urnas.

Os mesmos peemedebistas trabalham pesado para aprovar, no Senado o aumento dos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), que a equipe econômica quer segurar. Meirelles já disse a Temer que o reajuste, agora, será terrível para a imagem do ajuste fiscal, pois elevará o teto do funcionalismo e funcionará como um efeito cascata nas contas de estados e municípios. “Será um desastre”, diz um auxiliar de Meirelles. “É difícil entender o porquê de o PMDB estar jogando contra, quando deveria estar fechado com o governo, como faz o PSDB”, acrescenta.

Esse mesmo técnico lembra que os peemedebistas já criaram problemas durante a tramitação do projeto de renegociação das dívidas dos estados. Parte da legenda pressionou para que pontos importantes, como a proibição de reajustes a servidores nos próximos dois anos e a não realização de concursos públicos no mesmo período, fossem abortados. Com isso, Meirelles, que havia defendido esses pontos até o fim, acabou tendo a imagem arranhada entre os agentes econômicos. Muitas dúvidas foram levantadas pelo mercado sobre o real compromisso do Planalto com a arrumação das contas públicas.

 

Urgência

Não por acaso, o pessimismo em relação aos estados continua latente. Segundo os especialistas, se não houver uma coesão maior entre o governo e a base aliada, a tendência é de o quadro fiscal se agravar, deixando União, estados e municípios mais próximos da insolvência. “A situação exige urgência”, afirma o economista Francisco Pessoa, da LCA Consultores. Para ele, o governo já perdeu tempo demais nos últimos três meses em relação ao ajuste das finanças do país. No caso dos estados, o quadro beira a calamidade pública.

A economista Selene Nunes, doutoranda da Universidade de Brasília (UnB) e uma das autoras da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), não tem dúvidas disso. Levantamento realizado por ela entre 2000 e 2015 mostra que a situação de vários é tão crítica quanto à observada no fim dos anos 1990, quando o governo federal renegociou os débitos das 27 unidades da federação. Ela ressalta que apenas nove estados não degringolaram do ponto de vista financeiro: Amazonas, Espírito Santo, Pará, Piauí, Paraná, Rio Grande do Norte, Rondônia, Roraima e Santa Catarina.

“Há estados que já passaram tanto da conta, deram tanto aumento ao funcionalismo e incharam o quadro que chegaram a burlar a LRF apresentando números que não mostram a realidade das contas. Honestamente, só uma reforma estrutural, com demissões, vai minimizar o problema”, diz Selene. “Os governadores podem ter enganado a lei, mas burlar o limite legal não faz aparecer dinheiro para pagar as contas”, sentencia. (RH)