Valor econômico, v. 17, n. 4085, 07/09/2016. Empresas, p. B6

À espera do sinal verde para o jogo de azar

Companhias estrangeiras aguardam regulamentação para expandir negócios ao mercado brasileiro

Por: Samatha Pearson

 

O senhor com um casaco de lã marrom sentado do lado de fora de um bar nos Jardins, bairro de classe alta de São Paulo, não lembra em nada um mafioso, mas na verdade é um dos muitos operadores do jogo do bicho no Brasil - uma loteria clandestina operada por mafiosos e autoridades corruptas que movimenta R$ 12 bilhões por ano.

"Meu trabalho é como o de um terapeuta", diz, explicando como se joga a loteria ilegal, que começou como um sorteio promovido por um zoológico no Rio de Janeiro em 1888. Os clientes normalmente o buscam para contar seus sonhos, que ele interpreta com a ajuda de um dicionário especializado, que também indica qual dos 25 animais da loteria eles deveriam escolher.

Você sonhou que perdia o voo? Isso significa que tem arrependimentos e que deveria apostar na águia. "Cobras são muito comuns - indicam traição", diz.

A popularidade do jogo do bicho - entre ricos e pobres, jovens e velhos - é prova, dizem especialistas, de como um mercado de apostas poderia ser bem-sucedido no Brasil, se fosse legalizado.

Depois de 70 anos de proibição, enfim espera-se que o governo brasileiro legalize as apostas, talvez ainda neste ano, como parte dos esforços para elevar a arrecadação e tampar o buraco do déficit orçamentário do país, o que vem gerando enorme interesse de grupos mundiais de apostas e de cassinos.

"Seria um dos eventos mais significativos na história dos jogos de azar, se o Brasil abrisse o setor de apostas", segundo comunicado da casa de apostas britânica William Hill.

A Ladbrokes, rival da William Hill, o grupo de cassinos MGM Resorts Internacional, dos Estados Unidos, e a Betsson e a NetEnt, da Suécia, confirmam ter interesse em se expandir para o mercado brasileiro, uma vez que o setor seja regulamentado.

"O mercado brasileiro tem potencial enorme com uma população há muito vivendo um caso de amor com o futebol, que é o produto de maior crescimento da Ladbrokes", destaca a casa de apostas. A MGM, por sua vez, divulgar ter interesse em "estâncias turísticas integradas de grande escala".

Luiz Maia, advogado que trabalha em São Paulo e é especializado no setor de jogos, diz que clientes multinacionais já discutem parcerias locais e até assinaram contratos imobiliários condicionados, antecipando-se à aprovação das leis.

Com base no cálculo de que o setor de apostas normalmente representa cerca de 1% do Produto Interno Bruto (PIB) de um país, o mercado poderia ter apostas totais no valor de R$ 55 bilhões, de acordo com o Instituto Brasileiro Jogo Legal (IJL).

"As apostas sempre foram um certo tabu aqui, mas no resto do mundo é um mercado de entretenimento", afirma o presidente do IJL, José Santos de Sousa, acrescentando que o Brasil perde R$ 6 bilhões em impostos por ano com o mercado ilegal de jogos, de R$ 20 bilhões.

Os jogos de azar foram considerados ilegais em 1941 juntamente com a vadiagem, como parte da Lei das Contravenções Penais brasileiras - regras adotadas durante a industrialização do país para aumentar a produtividade. Em 1946, o então presidente Eurico Dutra emitiu um decreto fechando todos os cassinos - supostamente a pedido de sua mulher, uma católica devota. Apenas continuaram legais as loterias estatais, assim como o pôquer e as corridas de cavalo, atividades consideradas suficientemente baseadas em alguma habilidade.

Nos anos 90, a os bingos foram reintroduzidos no país com base na Lei Pelé, para financiar atividades esportivas, mas acabaram se tornando alvo de interessados em lavar dinheiro, com o que o Supremo Tribunal Federal os baniu em 2007.

O Senado e a Câmara dos Deputados discutem separadamente projetos de lei de legalização, incluindo propostas para obrigar os estrangeiros a formar parcerias locais e restrições de quantos cassinos uma empresa pode ser dona. As apostas pela internet podem continuar ilegais por receio de que alimentem o vício no jogo.

Depois da aprovação de uma lei pelo Congresso, a assinatura presidencial poderia vir ainda neste ano ou, mais provavelmente, no próximo, diz o advogado Luiz Maia. O presidente brasileiro, no entanto, poderia tentar acelerar o processo criando primeiramente uma agência reguladora do jogo, já que o governo está às voltas para derrubar um déficit orçamentário de mais de 10% do PIB.

Operadores estrangeiros provavelmente dominariam o mercado de cassinos, buscando como sede pontos turísticos cobiçados como o Rio de Janeiro, enquanto as apostas esportivas seriam disputadas acirradamente por empresas brasileiras, especialmente em vista do possível interesse dos grupos de mídia locais, dizem analistas.

Muito vai depender, entretanto de qual vai ser a parte do governo em impostos. O IJL calcula que vai ser similar à média mundial de 30% das operações físicas e de uma porcentagem abaixo disso para os grupos on-line.

O executivo-chefe da NetEnt, Per Eriksson, diz que "um bom nível [para o mercado on-line] seria entre 15% e 20%". "Não podemos estar presentes, se não pudermos ganhar algum dinheiro".

Para alguns chefes da máfia do jogo do bicho, no entanto, mesmo altos impostos podem representar um alívio, diz Santos de Sousa, citando um estudo de 2014 do instituto, de acordo com o qual um em cada nove operadores clandestinos são a favor da legalização. "Eles têm que pagar subornos para a polícia, para as autoridades - é uma cadeia tão longa de pessoas que, na verdade, seria mais barato pagar impostos."