Valor econômico, v. 17, n. 4084, 05/09/2016. Política, p. A8

Impeachment põe instituições em xeque

Para cientistas políticos, processo expôs influência do Supremo e levará à crise do sistema partidário

Por: Cristian Klein

 

O processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff, decidido pelo Senado, provocará na opinião dos cientistas políticos Marcus Melo, da UFPE, e Leonardo Avritzer, da UFMG, uma série de impactos e questionamentos sobre instituições brasileiras. Algumas mais imediatas e já sentidas, como a desidratação do PT, outras menos óbvias como o papel que o Judiciário e o empresariado - atores que estiveram no centro da cena do afastamento da petista - devem desempenhar daqui pela frente.

Para Avritzer, o Supremo Tribunal Federal influenciou o processo de impeachment de duas maneiras: ao não remover Eduardo Cunha da presidência da Câmara, apesar de haver um pedido da Procuradoria-Geral da República desde o ano passado; e ao removê-lo, "de forma muito extemporânea", no início de maio, 18 dias depois da votação da admissibilidade do processo. "Todas as duas coisas, conjuntamente, permitem uma interpretação de politização do Supremo, que não é boa, nem para o Judiciário, nem para a democracia no país", diz o cientista político, que sugere uma contenção do ativismo judicial.

O professor afirma que os acontecimentos políticos e jurídicos que culminaram no impeachment de Dilma, longe de mostrarem um avanço das instituições do país, revelaram sua fragilidade. "As instituições políticas brasileiras são muito menos consolidadas do que na verdade nós supúnhamos", diz Avritzer, para quem a tendência é que a Operação Lava-Jato arrefeça, depois de ter extrapolado os limites da legalidade.

Para Marcus Melo, a crise do PT poderá ser "devastadora" e levar de roldão todo o sistema partidário e o padrão de competição política das últimas duas décadas baseado na polarização entre petistas e tucanos. Nada que atrapalhe a manutenção da ampla maioria no Congresso do efetivado presidente Michel Temer. Mas a grande coalizão não será garantia de reformas como a tributária e a previdenciária, esperadas pelo empresariado, cujas entidades de classe apoiaram a ascensão do pemedebista. "Como ator coletivo o empresariado é débil no país: as megamobilizações por reformas que ocorreram no início dos anos 1990 e em 1997 deram com burros n'água. A Fiesp foi contra o Plano Real", diz Melo, autor do livro "Reformas constitucionais no Brasil: instituições políticas e processo decisório". Em sua opinião, "talvez as coisas precisem piorar para gerar esse senso de emergência que deflagre reformas".

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"Crise do PT pode ser devastadora", afirma Melo

Entrevista com Marcus Melo

Por: Cristian Klein

 

A seguir, os principais momentos da entrevista ao Valor:

 

Valor: Que ameaças há à maioria legislativa de Michel Temer?

Marcus Melo: O que importa para o governo aprovar a sua agenda é sua capacidade de gerenciar uma coalizão. Malgrado a elevadíssima fragmentação partidária, o governo Temer tem sido bem-sucedido em mobilizar uma base de apoio parlamentar. Isto tem sido possível porque a coalizão que lhe dá sustentação é a mais homogênea ideologicamente desde o governo Cardoso; possui a mais elevada taxa de coalescência (congruência entre tamanho das bancadas partidárias e ministérios controlados) desde o governo Collor; e a menor taxa de concentração de ministérios no partido do presidente desde o governo Sarney. Cooperar com o governo é a estratégia dominante do parlamentar médio, já que não há opção rival. A defecção do Centrão no governo Dilma ocorreu porque havia uma alternativa que se mostrou melhor do que o apoio quando a queda do governo tornou-se iminente. Caso Temer torne-se muito impopular, o comportamento legislativo oportunista irá se exacerbar mas seu governo provavelmente não irá cair.

 

Valor: Setores tolerantes na cobrança ao governo por ajuste fiscal, como o mercado financeiro e a indústria, tendem a redobrar pressão ou permanecerão condescendentes com as dificuldades de reforma?

Melo: Como mostrei em meu livro sobre as reformas constitucionais no Brasil, como ator coletivo o empresariado é débil no país: as megamobilizações por reformas (inclusive tributárias e da previdência social) que ocorreram no início dos anos 1990 e em 1997 deram com burros n'água. A Fiesp foi contra o Plano Real. As reformas são bens públicos que têm custos distintos para os diversos atores envolvidos gerando assim uma "guerra de atrito" entre os jogadores que formam coalizões para externalizar esses custos. As reformas viáveis são as que implicam em custos lineares para todos os envolvidos. O problema maior das reformas no momento é que ainda não há um senso de urgência, como ocorre em situações de crise hiperinflacionária ou crise de balanço de pagamentos. Talvez as coisas precisem piorar para gerar esse senso de emergência que deflagre reformas. A crise nos Estados pode ou não vir a ser esse catalisador porque há espaço para paliativos.

 

Valor: Qual o destino do PT, caso Lula não concorra em 2018? Os pouco mais de dois anos de Michel Temer consolidarão o esvaziamento da polarização PT x PSDB?

Melo: A literatura comparada mostra que os partidos entram em colapso quando ocorre processos intensos de diluição da marca ou rótulo partidário. Isso ocorre quando o partido torna-se indistinguível dos demais por inconsistência e/ou adoção de políticas e práticas comuns a outros partidos. As lealdades partidárias se dissolvem e os apoiadores passam a avaliar o desempenho do partido no curto prazo, como é típico de eleitores voláteis ("swing voters"), em contraste com os eleitores do núcleo duro de apoiadores. A combinação desses dois fatores - convergência de práticas e políticas e má avaliação do desempenho - pode ser devastador como mostra a experiência na América Latina de partidos outrora muito fortes como o Apra no Peru, UCR na Argentina ou AD na Venezuela. O PT defronta-se com esse dilema: adotou políticas macroeconômicas de seus adversários e práticas de corrupção que denunciava nos outros partidos. A imagem de "partido dos setores pobres" foi abalada pelas revelações das relações promíscuas com o alto empresariado. A tentativa do partido de se distanciar da Dilma é estratégia para "controle de danos" da erosão causada pela inconsistência programática, mas o golpe está sendo muito duro. Ao deixar de ser governo no plano federal e subnacional, os recursos organizacionais do PT sofrerão impacto devastador. O caso brasileiro é singular porque a "débâcle" é não só de um partido, mas do próprio sistema partidário, que são coisas distintas. Essa fragmentação também afeta o PSDB, porque a competição política polarizada vertebrava o sistema.

 

Valor: De que maneira a permanência da Lava-Jato pode afetar o governo federal?

Melo: O governo Temer enfrenta o que se chama "risco binário": as chances de sucesso ou fracasso são elevadas e simétricas. É um governo sob a espada de Dâmocles: o governo pode naufragar por revelações potencialmente devastadoras da Lava Jato. Mas também pode não acontecer nada. A resposta do governo aos escândalos tem sido rápida até ao presente. A rigor todo o processo político da derrocada do governo Dilma foi marcado pela elevada incerteza produzida pela forte autonomia de que gozam as instituições judiciais e de controle. Ela marcou a barganha política entre Dilma e Eduardo Cunha, por exemplo, inviabilizando acordos pela incapacidade desses atores em oferecer mutuamente promessas críveis. Como Dilma não conseguia barrar a Lava-Jato, ela não poderia chegar a um acordo com Cunha. Com a prisão de Delcídio e a descoberta das suas contas na Suíça, ele percebeu que iria cair e acionou a bomba atômica do impeachment, pensada apenas como instrumento de dissuasão.

 

Valor: Que imagem o impeachment terá na história: a de um golpe ou de um processo legítimo de substituição do presidente?

Melo: A narrativa que irá prevalecer depende do desenlace de alguns eventos ainda em curso, como o processo que o presidente Lula deverá enfrentar, as delações premiadas da Odebrecht e OAS, e o julgamento dos parlamentares envolvidos. Provavelmente esses processos não sofrerão descontinuidade e as evidências que virão à baila poderão enfraquecer a imagem da presidente. Graças a Cunha o discurso do golpe adquiriu força: por ser o algoz-réu, e, sobretudo, por ter restringido os termos da aceitação da denúncia às questões fiscais já que os fatos denunciados na Lava-Jato também o atingiria. O PT se apega ao ponto do golpe porque a vitimização é única "estratégia de saída" em quadro de crise aguda do partido. Mas apenas os eleitores do núcleo duro do partido são mobilizados por esse argumento: para os chamados "swing voters" (eleitores sem lealdade partidária e que votam com o bolso) seu apelo é mínimo.

 

Valor: Como um pacto, com anistia e reação legislativa à Lava-Jato, seria recebido pela população?

Melo: Acredito que haveria enorme reação pública a qualquer movimento para garantir impunidades aos agentes envolvidos na Lava-Jato. As instituições judiciais e parajudiciais e suas associações representativas certamente cumprirão um papel importante na mobilização da população. No entanto, a probabilidade de algum desses cenários ocorrer é muito baixa: o próprio Judiciário atuará para inviabilizá-lo.

 

Valor: Quais os custos e benefícios para o PSDB ao apoiar Temer? Que papel terá o Centrão na formatação da sucessão de 2018?

Melo: O Centrão não tem protagonismo político no sentido de pautar a política. É essencialmente reativo e opera segundo uma lógica rentista vis-à-vis os governos de turno. Sairá muito enfraquecido após a provável cassação do Cunha. Temer é governo "caretaker": não tem lua de mel presidencial e ao mesmo tempo é um pato manco ("lame duck"). Não ser candidato à reeleição enfraqueceria em princípio o Executivo, mas como essa promessa não é crível, aumenta a incerteza.

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"Supremo influenciou o processo", diz Avritzer

Entrevista com Leonardo Avritzer

Por: Cristian Klein

 

A seguir, os principais momentos da entrevista ao Valor:

 

Valor: Que ameaças há à maioria legislativa de Michel Temer?

Leonardo Avritzer: O problema é menos se existe uma ameaça à maioria, mas o que essa maioria vai implicar em termos de uma agenda mais progressista para o país. O grande pacto que está acontecendo no Brasil é menos pela governabilidade e muito mais um pacto com traços neo-oligárquicos, uma agenda que afeta fortemente os gastos sociais.

 

Valor: Setores tolerantes na cobrança ao governo por ajuste fiscal, como o mercado financeiro e a indústria, tendem a redobrar pressão ou permanecerão condescendentes com as dificuldades de reforma?

Avritzer: O governo Temer trabalha com a ideia de oferecer ao mercado uma grande coisa, que é a privatização de empresas estatais e talvez de alguns serviços, mas ele não trabalha com uma agenda de modernização de Estado, que é extremamente relevante.

 

Valor: Os pouco mais de dois anos de Michel Temer consolidarão o esvaziamento da polarização PT x PSDB?

Avritzer: Difícil dizer. Depende do governo Temer, da Lava-Jato e de desenvolvimentos políticos no Estado de São Paulo, por exemplo, quem vai ganhar a eleição para a prefeitura, e se essa eleição vai acabar rachando ou não o PSDB.

 

Valor: Qual o destino do PT, caso Lula não concorra em 2018?

Avritzer: Parece-me que vai sobreviver, mas o destino do PT está menos ligado ao Lula concorrer em 2018 do que a maneira como o partido vai se organizar. Precisa mudar completamente a relação dele com o Estado brasileiro, dar explicações fortes sobre os escândalos na Petrobras, se organizar de maneira menos centralizada em torno de um certo grupo que toma todas as decisões no Estado de São Paulo. Passa por uma queda da liderança que dirigiu o partido por mais de 35 anos. O PT deve seguir exemplos como o do Partido Trabalhista inglês, ou do Partido Socialista francês para os quais derrotas políticas ou eleitorais levam a fortes reestruturações organizacionais.

 

Valor: Quais os custos e benefícios para o PSDB ao apoiar Temer?

Avritzer: Acho que o Aécio não é uma liderança de fato no PSDB. Não ganhou a mais fácil das eleições desde 2002, que foi a de 2014, quando o clima de mudança no país era muito forte. A grande dúvida do PSDB é se ele vai se reorganizar ou se vai se fragmentar em diferentes direções. O [ministro] José Serra já se aproximou fortemente do PMDB. Outras lideranças mais viáveis estão fortemente atritadas com o governador Geraldo Alckmin. Algumas pessoas já estão no PSD, como o Andrea Matarazzo, liderança importante do PSDB em São Paulo. Até sobre o Alckmin se fala de uma mudança para o PSB.

 

Valor: De que maneira as eleições municipais podem vir a afetar os rumos deste governo?

Avritzer: O que provavelmente vai afetar os dois anos de governo será muito mais as propostas de ajuste que Temer fizer, a relação dele com o Congresso e possíveis mobilizações de rua. Aí é que está localizada a estabilidade ou instabilidade do governo.

 

Valor: De que maneira a permanência da Lava-Jato pode afetar o governo federal?

Avritzer: A Lava-Jato pode avançar muito fortemente sobre o sistema político e há evidência de que ela teria elementos para isso - a delação do Sérgio Machado e a possível delação do Marcelo Odebrecht devem implicar um grupo muito grande de pessoas mas quase todas fora do PT. Fala-se no Serra, em boa parte do núcleo de ministros muito próximos de Temer, como Eliseu Padilha, Henrique Alves, entre outros. Há aí uma possibilidade de forte instabilidade do governo. O mais provável, no entanto, é ela tentar caminhar para um final a partir daquilo que ela já tem, com dois ou três membros simbólicos fora do campo petista e talvez mais próximos do presidente Temer. A tendência maior é ela acabar nesta direção do que num acerto de contas mais generalizado, que afete totalmente o sistema político, como foi a operação Mãos Limpas na Itália.

 

Valor: Como um pacto, com anistia e reação legislativa à Lava-Jato, seria recebido pela população?

Avritzer: Implicaria numa deslegitimação total do sistema político. O Judiciário e o Ministério Público ou não apoiariam, ou se apoiassem, seriam levados de roldão. A Lava-Jato deve procurar um fim um pouco mais equilibrado. O que, sim, é possível é você atuar em relação a uma série de abusos que a gente sabe que ocorreram mesmo: abusos de poder; vazamentos; a maneira como ela lidou com a prisão preventiva; o fato de a Lava-Jato [querer] uma porcentagem [da multa] pelos acordos de leniência; violou algumas garantias fundamentais em relação a escutas e à maneira como foram feitas; e fortes abusos em relação a familiares de suspeitos que nenhuma relação têm com a corrupção na Petrobras. Talvez o que a Lava-Jato possa ser é mais circunscrita a uma tradição mais forte de Estado de direito.

 

Valor: A Lava-Jato testou seus limites quando pediu as prisões de Renan, Cunha, Sarney e Jucá?

Avritzer: Não sei se quando chegou ali ou se ela já chegou naquele momento desgastada. O momento decisivo dela, no mês de março, ao atuar em relação ao ex-presidente Lula e a Dilma, implicou em forte ruptura com a legalidade vigente. O problema central da Lava-Jato é que o Brasil precisa de menos corrupção e menos impunidade, mas não pode admitir também condenações a qualquer custo. A Lava-Jato tem que procurar se adaptar a essa realidade. Enquanto ela esteve ligada ao processo político que acabou levando à remoção da presidente, fez-se vistas grossas a essas questões, mas no momento em que tem algum nível de normalização política, estas questões devem voltar a prevalecer.

 

Valor: Que imagem o impeachment terá na história: a de um golpe ou de um processo legítimo de substituição do presidente?

Avritzer: No sentido clássico da palavra, certamente o impeachment não é um golpe. Mas no sentido clássico dos processos de impeachment tal qual ele está consolidado especialmente no presidencialismo norte-americano, nós também não tivemos um impeachment normal. O impeachment fica numa área cinzenta dentro da institucionalidade democrática. A imagem que fica do impeachment é a de que o presidencialismo brasileiro precisa ser aprimorado e muito, que as instituições políticas brasileiras são muito menos consolidadas do que na verdade nós supúnhamos. O Congresso, com baixíssima qualidade de representação, aceitou ser presidido por mais de um ano por uma pessoa com fortíssimas evidências de estar envolvida num dos mais fortes esquemas de corrupção da história recente do país. O Poder Judiciário tentou ficar à margem do processo mas no final não conseguiu e também se politizou. O Brasil tem muitos avanços institucionais a fazer antes de virarmos uma democracia consolidada.

 

Valor: Como avalia o papel do Supremo no impeachment?

Avritzer: O Supremo influenciou esse processo de duas maneiras: ao não remover Eduardo Cunha, apesar de haver um pedido da Procuradoria-Geral da República em relação a isso desde o ano passado; e ao remover Eduardo Cunha de forma muito extemporânea logo depois. Todas as duas coisas, conjuntamente, permitem uma interpretação de politização do Supremo, que não é boa, nem para o Judiciário, nem para a democracia no país.