Correio braziliense, n. 19445, 21/08/2016. Economia, p. 6

Corroído pela inflação, FGTS completa 50 anos

Fórmula de reajuste do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço mudou em 1999. Quem já tinha dinheiro à época precisaria de correção de 139,41% no saldo de hoje apenas para o valor real empatar com o do início do período

Por: Celia Perrone

 

O Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) completa, em crise, meio século de existência. O fundo surgiu em 1966 como um sistema de poupança dos trabalhadores em substituição ao sistema então vigente de estabilidade no emprego após 10 anos. Com um patrimônio total de R$ 457,6 bilhões e 141 milhões de contas, se tornou uma fonte de recursos abundantes para financiamento. Por isso, tem sido um dos alvos preferidos de diferentes tipos de corrupção: desde as pedaladas fiscais, quando o dinheiro foi parar no caixa do Tesouro Nacional para reduzir o rombo das contas públicas, até suspeitas de desvios diretamente para o bolso de políticos. Investigam-se suspeitas de que o deputado federal Eduardo Cunha (PMDB-RJ) tenha recebido mais de R$ 16 milhões em propinas de grandes empresas que buscavam financiamento do fundo de investimento que usa recursos do FGTS (FI-FGTS).

O efeito mais perverso do prejuízo, porém, está do lado do trabalhador, que tem sofrido perdas maciças nos seus rendimentos ao longo dos anos. A remuneração do FGTS é muito abaixo do mercado, não acompanha nem a inflação. São pagos anualmente 3% de juros mais a Taxa Referencial (TR). No ano passado, por exemplo, foi corrigido em 4,71% (3% de juros mais TR). A inflação das famílias que recebem até cinco salários, medida pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor (INPC) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), ficou em 11,28%.

 

Mudança

Em 1999, o Banco Central (BC) mudou o cálculo de correção da TR e começou a aplicar um redutor, o que diminuiu os rendimentos. Desde então, as contas do FGTS acumulam perdas para a inflação. Teriam de ser corrigidas em 139,41% para se igualar à inflação. Isso significa que, se o INPC fosse aplicado para corrigir os saldos das contas do trabalhador, o governo teria que ter depositado mais R$ 334,3 bilhões. Com o saldo desidratado, as empresas, por sua vez, também economizaram, nesse mesmo período, cerca de R$ 85 bilhões com o pagamento dos 40% de multa nos casos de demissão sem justa causa.

Um exemplo: um trabalhador que tinha R$ 10 mil no FGTS em 1999, hoje tem R$ 22.294,90, em sua conta do fundo na Caixa Econômica Federal. Se o INPC fosse aplicado para corrigir o valor, teria R$ 53.376. A diferença é de R$ 31.081, o que equivale a 139,41% do que efetivamente está na conta dessa pessoa.

Caso o empregado seja demitido, a empresa pagará multa de 40%, ou R$ 9.176  sobre o saldo depositado de R$ 22.294. Se esse montante fosse atualizado pelo INPC, a empresa teria que pagar R$ 21.200. O empregado receberia, na rescisão do contrato de trabalho, R$ 74.576 em vez dos R$ 31.470 que efetivamente serão pagos. É uma perda de R$ 43.106. Nesse caso a empresa economizou R$ 12.021,00 na multa do FGTS e o governo R$ 31.081,00 sem a atualização pela inflação do período.

“O fundo é a melhor coisa que apareceu para o trabalhador, mas é muito melhor para o governo, que descobriu que pode ter uma fonte de recursos inesgotável”, afirma Mario Avelino, presidente do Instituto Fundo Devido ao Trabalhador. Avelino critica o fato de o BC definir o redutor da TR. “Esse é um índice que vai ao encontro dos interesses do governo. Será de quanto o governo quiser que seja. Além disso, mais de R$ 150 bilhões estão aplicados em títulos do Tesouro Direto, financiando a dívida do governo, quando deveria ser investido em saneamento básico para evitar a dengue”, sustentou. Para Avelino, o índice que deveria corrigir o fundo seria o INPC. “É muito mais justo, pois reflete a realidade de quem tem renda mais baixa”, explica.

O consultor da Câmara dos Deputados Leonardo Rolim conta que o redutor da TR foi uma prática que começou no governo Fernando Henrique Cardoso e foi ampliada nos governos Dilma e Lula. “É importante que uma boa gestão dos recursos dê lucro, mas isso não pode ser feito às custas do patrimônio dos trabalhadores, com uma remuneração abaixo da inflação”, avalia. No entanto, ele ressalva que o FGTS tem um papel importante para financiar projetos do governo. “A diferença entre o que é pago ao trabalhador e o que é aplicado em títulos do Tesouro Direto permite que, com o lucro, o governo desenvolva políticas públicas por meio do FI-FGTS como subsidiar, a fundo perdido, o programa Minha Casa Minha Vida. Do total do programa, 80% dos recursos vêm do FGTS”, analisou.

Há no Senado um Projeto de Lei (PLS nº 581), desde 2007, de autoria do senador Paulo Paim (PT/RS), que prevê que o índice de correção do FGTS passe da TR para o INPC e que 50% com o lucro obtido nos financiamentos de casa própria e obras de infraestrutura e saneamento básico seja repassado para o trabalhador. Além disso, ele propõe aplicar até 20%em fundos de ações e investimentos, na busca por rendimento superior à inflação.

Paim estima que o valor das perdas com a correção subestimada e as fraudes atinjam prejuízos de R$ 627,1 bilhões. “A proposta está parada na Comissão de Assuntos Sociais esperando parecer da relatoria. A desculpa que eu ouço é que, como é um dinheiro para comprar casa própria, tem que ser subsidiado. Mas a pessoa, quando compra a casa financiada, acaba pagando três vezes o valor dela”, critica.

 

Substituição

No sistema anterior a 1966, o funcionário que era demitido recebia um salário por ano trabalhado. Muitas empresas provisionavam 1/12 da renda mensal para essa eventualidade. A partir do 10º aniversário no emprego, passava-se a ter estabilidade, o que aumentava para dois salários por ano a multa. O FGTS tornou compulsório o provisionamento que já era fei, reunindo também recursos para financiamento de obras. A estabilidade foi substituída pela multa, inicialmente de 10% sobre o saldo em qualquer período.