Avanço digital desafia empresas e legislação

 

25/07/2016
Simone Kafruni

 

As novas tecnologias surgem para facilitar a vida das pessoas, mas a velocidade das inovações está dando dor de cabeça para especialistas em direito tributário e trabalhista e, principalmente, para os trabalhadores e o governo. Cada vez mais, softwares, aplicativos e serviços OTTs (Over-the-Top) — dos quais WhatsApp e Netflix  são os exemplos mais conhecidos — subvertem as cadeias produtivas de setores tradicionais da economia. Como o tempo para adequar a lei e a regulamentação não acompanha, nem de perto, a rapidez das transformações, os efeitos iniciais são perversos para a sobrevivência de empresas e dos empregos e para a arrecadação de impostos.

Os bloqueios do WhatsApp, as controvérsias sobre o Uber, a reação exacerbada de taxistas diante do novo modelo de transporte de passageiros e a ameaça de regulação dos aplicativos, encarecendo os serviços, mostram que a sociedade ainda não está preparada para lidar com os avanços da era digital.

Na opinião de Anderson Cardoso, sócio do escritório Souto Correa e especialista em direito tributário, o movimento da tecnologia é irreversível. “A realidade é muito mais complexa do que o direito, que demora para regular. É natural a identificação de lacunas, a necessidade de aplicação de normas existentes para os novos aplicativos ou a criação de novas regras”, explica.

Cardoso lembra que a discussão sobre como tributar programas de computador, softwares, jogos, aplicações e músicas foi parar no Supremo Tribunal Federal (STF). “Antes, o produto era taxado pelo meio físico, disquete ou CD. Hoje, como é uma mera transferência de arquivo, não se sabe como aplicar o ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços)”, diz. Outra dificuldade é que o imposto é estadual, e não há como precisar em que local está o comprador e de onde, exatamente, ele baixou o programa, que pode ser até de fora do país. “O entendimento que tende a prevalecer é o da impossibilidade de tributação pelo ICMS”, opina.

O advogado ressalta que, em alguns casos, quando entra a tributação, a inovação perde a competitividade diante das cadeias tradicionais da economia. “No caso do Uber, o debate é centrado na diferença competitiva do licenciamento, que o táxi paga. Se pagar também, o Uber não vai conseguir praticar preços mais baixos”, diz Cardoso.

 

Danos existenciais

Além de criar problemas tributários, as novas tecnologias têm impacto no emprego e nos direitos dos trabalhadores. Denise Fincato, sócia do escritório Souto Correa e professora de doutorado de Novas Tecnologias e Relações de Trabalho da PUC/RS, alerta para a dificuldade de aplicação da atual legislação no teletrabalho.

“Muitas empresas têm adotado o sistema homework ou teletrabalho (realizado em qualquer lugar) porque não pressupõe estrutura grande e cara para o empregador”, explica Denise. Normalmente, a empresa distribui ferramentas, como tablets ou celulares, e estabelece um espaço virtual de trabalho. “Isso gera um impacto para nós, brasileiros, na ausência de legislação sobre o assunto.” Nem o empregador tem como controlar horas extras, nem o funcionário tem segurança sobre seus direitos. “O trabalho remoto tem peculiaridades que não se acomodam na CLT (Consolidação das Leis do Trabalho”, observa a professora.

A especialista defende a necessidade de mudanças na legislação. “O excesso de informação deixa o funcionário acessível a qualquer hora e em qualquer lugar. Isso tem gerado tecnostress e desconexão, duas figuras novas para o Judiciário”, afirma. Por enquanto, as decisões têm sido conforme o juiz e a partir de jurisprudência. “As pessoas têm o direito de se desconectar do trabalho. A hiperconexão como exigência do empregador tem gerado a interpretação de que o funcionário pode pedir indenização por danos existenciais, uma nova categoria a partir da ideia de que a pessoa deixa de lado a sua vida pessoal.”

Esses problemas ainda não superaram as demandas trabalhistas normais, diz Denise. “Há 10 anos que se fala sobre isso. Mas a velocidade aumentou muito. Como a automação, os aplicativos também tiram postos de trabalho. Mas isso é irreversível. Precisamos pensar sobre o assunto, trabalhar em cima dos impactos desse tema para trazer um mínimo de segurança para as relações”, sentencia.

 

Correio braziliense, n. 19418, 25/07/2016. Economia, p. 6