Correio braziliense, n. 19425, 01/08/2016. Economia, p. 6

Servidores públicos têm dívida recorde

Dos 11,3 milhões de funcionários, 70% possuem débitos %u2014 a média das famílias é de 58%. Só no consignado, as obrigações deles somam R$ 171,3 bilhões. Os 34,4 milhões que trabalham na iniciativa privada devem R$ 18,2 bilhões

Por: Vera Batista

 

Os servidores públicos tiveram aumento médio de 30% nos contracheques nos últimos cinco anos e ganham 40% a mais do que os trabalhadores da iniciativa privada. Mas a situação financeira da maior parte deles não é nada invejável: estão com a corda no pescoço. Só no crédito consignado, devem R$ 171,3 bilhões — valor recorde — a instituições financeiras, de acordo com dados do Banco Central (BC). A alta renda, aliada à garantia de estabilidade no emprego, leva essa categoria a se transformar em presa fácil para os bancos na concessão de crédito.

A gastança desenfreada levou 70% desse grupo de trabalhadores ao endividamento, aponta o Instituto Brasileiro de Estudo e Defesa das Relações de Consumo (Ibedec). Os dados são alarmantes já que a proporção é maior do que os 58% das famílias que declaram à Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC), no mesmo período, ter dívidas entre cheque pré-datado, cartão de crédito, cheque especial, carnê de loja, empréstimo pessoal, prestação de carro e seguro. Para piorar a situação, os 34,4 milhões de trabalhadores do setor privado devem, no consignado, aproximadamente um décimo do que os 11,3 milhões de servidores no consignado: R$ 18,2 bilhões.

A legislação estabelece que o comprometimento máximo do salário do servidor com o consignado é de 35%, dos quais 5% só podem ser usados para pagar a fatura do cartão de crédito. E quem controla o cumprimento da norma é o Ministério do Planejamento, explica o advogado Heleno Torres, professor de direito financeiro da Universidade de São Paulo (USP).

“Caso haja tentativa de ultrapassar o limite, o Planejamento não pode permitir o desconto. Se isso ocorrer, o gestor deve ser punido. Ainda há um controle das instituições financeiras e do BC. O problema é que eles acumulam o consignado com outras operações de crédito”, ressalta.

 

Descontrole

É difícil entender por que as pessoas chegam à situação de descontrole. “Há assédio por parte de entidades que concedem crédito. Elas se aproveitam da falta de educação financeira e de brechas na legislação”, diz o economista Mauricio Godoi, da Saint Paul Escola de Negócios. “O projeto de lei nº 355 de 2015, que determina que as expressões ‘crédito gratuito’, ‘sem juros e sem acréscimo’ sejam abolidas da publicidade, está parado no Congresso Nacional”, critica.

Além da propaganda enganosa, há armadilhas que atraem os consumidores para aumentar o nível de endividamento, ressalta Eduardo Tambellini, sócio-diretor da GoOn, empresa especializada em gestão de risco, crédito e cobrança.“Se o consumidor paga parte significativa das parcelas, há a possibilidade de abrir nova margem consignável, desde que não ultrapasse o limite mensal de endividamento de 35%”, garante. Na prática, se o cliente já pagou mais de 20 parcelas de crédito consignado e tem bom relacionamento com a instituição, pode fazer nova operação, em prazo maior.

Quando o servidor recebe aumento, é imediatamente procurado com proposta de novo empréstimo. “Se ganhava R$ 10 mil, passou para R$ 12 mil, abriu margem para outro empréstimo”, conta Tambellini.

O processo de endividamento dos servidores começa assim que ele vai ao banco abrir a conta depois que toma posse no concurso, explica o advogado Enil Henrique de Souza Neto, da Lourenço Advocacia e Advogados Associados.

Primeiro, os gerentes oferecem um leque de operações de crédito. O consignado, cheque especial, crédito direto ao consumidor e cartão de crédito.

Joaquim Pinto, 59 anos, agente administrativo do Ministério da Saúde, é um dos que sofrem com as obrigações financeiras. Com salário de R$ 4 mil mensais, tem 20% da renda comprometida com o consignado. Além disso, usa o cartão de crédito e o cheque especial. “Tiro de um canto para ajeitar o outro. Estou há 20 anos nessa luta. O salário está achatado. Os aumentos são abaixo da inflação”, justifica-se Pinto.

Ele diz que ainda não se aposentou para evitar o baque na renda com a perda da gratificação. Precisou, inclusive, cancelar o plano de saúde da Geap Autogestão. “Antes, eu tinha cinco dependentes. Os filhos cresceram. Hoje somos eu e minha mulher. Mas a mensalidade que era R$ 675 passou para R$ 1.060”, conta. Pinto comenta que ele e muitos colegas recebem, na porta dos ministérios, ofertas de crédito.“O assédio é grande. Primeiro, dão tudo, depois, colocam uma empresa de cobrança atrás da gente”, critica.

As agruras de Joaquim são as mesmas de Sandra Eleto, 56 anos, dos quais 31 dedicados ao serviço público. Com um salário de R$ 5 mil, conta ter dívidas a perder de vistas. Está sem margem para consignados porque, há seis anos, fez um empréstimo para ajudar o filho a pagar o casamento, contrato que ainda não quitou. “Pago tudo no cartão de crédito, mas estou com as contas em dia”, afirma. Jansen Fonseca, 32, deixou a lista dos endividados há pouco tempo. Analista de planejamento, ele tem um salário de R$ 10 mil, em muitos meses insuficiente para pagar tudo de que precisa. “Passei cinco anos endividado. Tive que reduzir o lazer para me equilibrar”, confessa.

 

Frase

“Há assédio por parte de entidades que concedem crédito. Elas se aproveitam da falta de educação financeira e de brechas na legislação”

Mauricio Godoi, economista da Saint Paul Escola de Negócios

_______________________________________________________________________________________________________

Gastos exigem planejamento

 

O processo de aumento de renda dos últimos anos sem que os trabalhadores tivessem o mínimo de educação financeira explica o nível de endividamento dos servidores públicos, avalia o presidente do Instituto Brasileiro de Estudo e Defesa das Relações de Consumo (Ibedec), Geraldo Tardin. Ele explica que o brasileiro foi incentivado por muitos anos a consumir sem antes saber como controlar as finanças pessoais.

Ele diz que alguns de seus clientes precisaram ser interditados. “Uma servidora, que trabalhava em um tribunal, bastava sair de casa e fazia compras de R$ 4 mil em supérfluos”, destaca.

Em último caso, conta Tardin, a saída é uma ação de insolvência civil. “É a falência da pessoa física, igual ao procedimento adotado para empresas. A gente chama os credores e analisa como pagar”, diz.

“Tento, há anos, responsabilizar as instituições financeiras que iludem o cliente ou fazem os gerentes afrouxarem o critério de análise de crédito para baterem metas. Tem gente com 80% da renda comprometida. Temos que pedir na Justiça a redução para 30% e o alongamento do prazo, com os juros do contrato”, ressalta.

 

Normas

A Federação Brasileira de Bancos (Febraban) informou que as instituições seguem um conjunto de normas que inclui “clareza na informação sobre as condições dos empréstimos, os custos envolvidos, limites do crédito, documentação obrigatória, regras para liquidação antecipada da dívida e as consequências da falta de pagamento”. Além disso, a entidade declarou que os bancos fazem diversas ações para conscientizar as pessoas sobre o uso do crédito.

Não são só os casos de descontrole que preocupam. Tardin explica que boa parte dos servidores não se planeja para a aposentadoria. Quando requerem o benefício, se dão conta de que terão perda de renda.

O analista de planejamento Mateus Prado, 29 anos, se endividou assim que passou no concurso. “Entrei em um contexto preocupante há dois anos, quando comprei um imóvel e um carro. Agora está tudo sob controle”, diz. Semelhante situação viveu o também analista de planejamento André Gonçalves, 36. “Cortei cartão de crédito e comecei a identificar as despesas. Às vezes, não sabia nem onde gastava”, admite.

Para o educador financeiro Reinaldo Domingos, a questão não é a renda. “Quem sempre acha que ganha pouco e não adapta seu padrão de vida dificilmente sairá da ciranda financeira”, lembra Domingos. Ele destaca que ninguém obriga o consumidor a gastar demasiadamente. O advogado Heleno Torres também chama atenção para a responsabilidade pessoal. “O Estado não tem que ser babá do cidadão”, conclui. (VB)