Uma década de "basta"

 

31/07/2016
Maria da Penha

 

Ana Silva*, 34, aperta os nós dos dedos como se fosse capaz de desenrolar com as mãos os problemas da vida após o fim do relacionamento com Pedro Cardoso*. Há quatro anos, ela deixou os filhos menores com os avós e levou o maior para morar com ela e o então namorado. O destino era uma casa, na roça, em Planaltina. Depois de um ano e meio de relacionamento, Pedro convenceu a moça de que poderia ser padrasto de seus filhos. “Primeiro, eu queria confiar. Não fui me juntando a ele e levando logo os meus filhos. Quando ele me passou confiança, levei”, justifica, nunca dizendo o nome daquele que virou seu algoz. A ida dos filhos menores à casa de Ana, em 2013, escancarou à família o pesadelo que ela vivia calada. A jovem é uma das mulheres que tiveram o destino alterado por causa da Lei Maria da Penha, que completa, no próximo domingo, 10 anos de existência e de proteção a pessoas que tiveram a vida destruída por companheiros.

De acordo com o estudo Avaliando a Efetividade da Lei Maria da Penha, feito pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), em 2015, a Lei Maria da Penha teve impacto positivo na redução de assassinatos de mulheres em decorrência de violência doméstica. A lei fez cair em cerca de 10% a projeção anterior de aumento da taxa de homicídios domésticos, a partir de 2006, quando entrou em vigor. Segundo os dados, a queda é atribuída ao aumento da pena para o agressor, ao maior empoderamento da mulher, às condições de segurança para que a vítima denuncie e ao aperfeiçoamento do sistema de Justiça Criminal para atender de forma mais efetiva os casos de violência doméstica. Ou seja, em um cenário em que não existisse a lei, possivelmente as taxas de homicídios de mulheres aumentariam. No Brasil, os dados do Ipea mostram que a taxa de homicídios de mulheres dentro de casa era de 1,1 para cada 100 mil habitantes, em 2006, e de 1,2 para cada 100 mil habitantes, em 2011. A violência ainda não parou, mas ganhou uma grande combatente que a deixou, ao menos, estacionada.

“Eu estava presa, comecei a viver em cárcere privado. Não podia ver a minha mãe sem ele ir junto. Ele me perguntava: ‘Para que você quer ver sua mãe? Você casou, tem família. Não precisa ir pra casa da sua mãe’”, relembra Ana Silva. A carência de Pedro era doentia. Aos poucos, ele foi sequestrando Ana dos próprios filhos. “Eu não podia fazer um carinho neles que ele não deixava”, relembra com remorso. Ana ficou dependente, deprimida e agradece a prima por ter denunciado o ex-companheiro. “Foi Deus quem permitiu que acontecesse isso tudo, que abrisse essa brecha. Porque a minha menor foi para a casa da minha prima e acabou abrindo a boca e pedindo socorro, dizendo que estava sendo estuprada por ele”, narra a mãe, muito emocionada ao detalhar o terror vivido em silêncio por três anos. Enquanto a mãe relembra os fatos, a menina de 6 anos brinca, sentada ao chão, próximo a Ana, sem esboçar reações ao ouvir seu nome.

Hoje, Ana trabalha no Juizado de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher de Sobradinho e ajuda outras mulheres a se libertarem de relacionamentos abusivos. “É fundamental que se busque ajuda, que não se tenha medo. Se tiver medo, é pior. Eu falo por mim, que quase entrei em depressão”, diz. A juíza do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDFT) Rejane Jungbluth Suxberger, titular da Vara de Violência Doméstica de Sobradinho, é responsável por audiências com casais como Ana e Pedro. Rejane desenvolve um trabalho especial com as mulheres que atende. Ela dividiu o espaço de espera da sala de audiências para que as vítimas não fiquem expostas aos agressores. Nessa sala, as mulheres assistem a vídeos escolhidos por psicólogos forenses, com esclarecimentos sobre seus direitos previstos em lei. Ali, é dado o primeiro passo rumo ao empoderamento feminino: não desistir da denúncia.

Segundo Rejane, em 90% dos casos os agressores são maridos que xingam, ameaçam e batem em companheiras. Ou homens que perseguem as ex-mulheres. Segundo o Mapa da Violência de 2015, independentemente da faixa etária, “parentes imediatos ou parceiros e ex-parceiros são responsáveis por 67,2% das agressões dos atendimentos de vítimas de violência contra a mulher”. A juíza ainda problematiza o exemplo que a atual geração dá para as gerações futuras ao denunciar o descumprimento das medidas. “A mulher tem que denunciar não só quando acontece com ela. O filho dela está vendo o vizinho bater na vizinha o dia todo, então a violência passa a ser regra e não a exceção para ele. Quando você vai examinar a história desses homens que chegam aqui, geralmente eles cresceram vendo o pai agredir a mãe. Eles cresceram num ambiente de violência e acabam reproduzindo isso no futuro”, analisa.

Ainda que muitas mulheres sofram com a violência, desde 7 de agosto de 2006, o cenário de apoio a essas vítimas vem se transformando. Após 10 anos de sanção da Lei Maria da Penha, o saldo é positivo. As unidades de Federação passaram a contar com delegacias especializadas de atendimento à mulher e núcleos de atendimento especializado. Houve um aumento da rede de apoio por meio de iniciativas como a Casa da Mulher Brasileira, que concentra em um mesmo lugar atendimentos jurídico, psicológico, médico, cursos e oficinas de capacitação, abrigo, entre outros.

 

Dificuldades

Autora da lei, a deputada Jandira Feghali (PCdoB-RJ) ressalta que, nesses 10 anos, as pessoas passaram a confiar na possibilidade de serem protegidas. “Essas mulheres buscam proteção porque também há a superação da impunidade. Nós já tivemos 300 mil vidas salvas, 90 mil prisões em flagrante.” Jandira destaca que, de 2014 para 2015, as detenções aumentaram ainda mais por causa de uma forte campanha do Ligue 180, canal de denúncias.

Orgulhosa da legislação, a parlamentar reconhece a dificuldade de execução. “Apesar de ter uma estatística dramática no Brasil de morte de mulheres, de termos ainda uma cultura do estupro muito forte, a lei já deu resultados importantes. O nosso limite está exatamente no cumprimento dos três níveis de governo, principalmente do governo do estado, que tem que criar as varas, tem que ter orçamento do Tribunal de Justiça. A resistência para aplicar, muitas vezes, é muito grande. A realidade do Brasil é muito desigual e o que nós temos que exigir é que essa lei seja cumprida nacionalmente e salve mais vidas”, comenta.

 

*Nomes fictícios a pedido das vítimas

 

A origem

A Lei Maria da Penha ganhou este nome porque em maio de 1983 a cearense Maria da Penha dormia e levou um tiro nas costas do então marido, Marco Antonio Heredia Viveros. Ela ficou paraplégica. Marco Antônio por duas vezes foi julgado e condenado, mas saiu em liberdade devido a recursos de defesa. Depois disso, ainda esfaqueou Maria. Sem esperanças na justiça brasileira, ela escreveu o livro Sobrevivi… Posso contar, publicado em 1994. A obra teve visibilidade internacional e serviu para denunciar e condenar o Brasil pela omissão no tratamento dos casos de violência contra a mulher. A pressão internacional fez com que a legislação brasileira fosse revista, para garantir a proteção da mulher em situação de violência doméstica e a punição do agressor. Porém, só depois de 12 anos da publicação do livro, o projeto de lei foi aprovado por unanimidade na Câmara e no Senado, e transformado na Lei Federal nº 11.340/2006.

 

Correio braziliense, n. 19424, 31/07/2016. Brasil, p. 6