Correio braziliense, n. 19403, 11/07/2016. Cidades, p. 17

O respeito a elas vem desde a infância

Mães, pais e professores têm papel fundamental na educação de gênero de meninos e meninas. Os ensinamentos, segundo educadores e especialistas, devem começar logo nos primeiros anos de vida, dentro de casa e nas escolas

Por: Camila Costa

 

A realidade da violência contra as mulheres é mais complexa do que se pode imaginar. Elas apanham, sim. São agredidas e mortas. O Estado oferece rede de acolhimento, com delegacias especializadas, 19 varas judiciais específicas, medidas protetivas de afastamento, 40 promotorias, Casa da Mulher Brasileira, Casa Abrigo, projetos de reinserção da mulher no mercado de trabalho, na convivência social. Mas uma coisa ainda perturba. O homem que quer bater, xingar, ameaçar, matar a esposa, a namorada ou a ex-mulher o fará. O agressor entende que deve e, pior, pode agredir. A mudança de postura deve ser mais profunda, a partir da casa, da escola, da infância.

Incorporar o tema nos colégios não é fácil. É uma das principais reivindicações dos militantes contra a violência de gênero. Há menos de um mês, na Esplanada dos Ministérios, 3 mil mulheres se juntaram para protestar contra a cultura de estupro, pedir justiça para os casos que envolvem violência contra elas e exigir políticas públicas que garantam a educação de gênero nas instituições de ensino brasileiras.

A mobilização foi organizada por 16 entidades ligadas a causas feministas e de defesa da criança e do adolescente. O estopim foi o caso da menina estuprada por mais de 30 homens no Rio de Janeiro. Uma semana depois do crime praticado na capital carioca, Brasília se tornou cenário para a mesma barbárie. Três meninas, de 11, 13 e 15 anos, em locais diferentes do DF, foram estupradas por mais de dois homens.

Quando o assunto entra na pauta em alguma escola, logo é questionado. Um professor do Centro Educacional 6 de Ceilândia passou um trabalho no qual os alunos deveriam debater temas como homofobia, integração de gênero, pansexualidade, relações poliamorosas e transexualidade. Um pai reclamou e deputados distritais pediram esclarecimentos à direção e “providências legais cabíveis”. Uma das parlamentares disse que a atitude era para “defender os valores da família”.

Apesar disso, o governo e a Justiça reconhecem a necessidade de falar sobre o tema. O Tribunal de Justiça do DF e dos Territórios (TJDFT) criou o projeto Maria da Penha vai  à escola com o objetivo de tratar do tema.  Recentemente, o governo iniciou o Por Dentro da Lei Maria da Penha. Justamente para levar para dentro das salas de aula informações sobre violência contra a mulher, direitos e deveres e igualdade de gênero. “Enquanto houver uma pessoa que desconheça essa lei, a efetividade e a importância dela, não cessaremos esse projeto”, avaliou a subsecretária de Política para as Mulheres e palestrante do projeto, Lucia Bessa.

Cinco cidades — Estrutural, Varjão, Itapoã, Paranoá e São Sebastião — receberam a comitiva da pasta. Em uma delas, foi a vez do Centro Educacional São Francisco, em São Sebastião, na última terça-feira. Segundo a professora de sociologia Mariana Cruz, o papel da escola é trazer para a sala de aula conteúdos e conhecimentos capazes de fazer os alunos refletirem e questionarem o mundo em que vivem. “Falar sobre isso ou aquilo não é impor uma ideologia. Não falar sobre certas coisas é ideológico. E do tipo que mata. Professor não é doutrinador, não é papel da escola ensinar comportamentos, mas, sim, refletir. Dar visibilidade, inclusive, teoricamente, de como a sociedade é construída”, indica a professora.

 

Em casa

Na casa da arquiteta Eliana Santoni, 46 anos, o papo é sério. São duas meninas, gêmeas, Julia e Luiza, 7, e um menino, Miguel, 13. Entre eles, o maior princípio é o da igualdade. Dessa maneira, não faça com os outros o que você não gostaria que fizessem com você. Com essa premissa, Eliana ensina que ninguém pode xingar, bater ou ofender ninguém. E, quando o assunto é violência contra a mulher, outro ponto é destacado na família: Miguel nunca poderá ser violento com uma menina, assim como Julia e Luiza estão proibidas de repetir o gesto contra um homem. “E não só por ser mulher. É uma questão de respeito mútuo. Digo a eles que precisam sentir orgulho das coisas que fazem”, explica.

O assunto doméstico mais recente foi o da atriz Luiza Brunet, que denunciou, na última semana, agressões do marido. Eliana mostrou a foto para Miguel. “Ele virou para mim e perguntou se alguém teria coragem de fazer aquilo. Eu disse que tinha e que faziam ainda pior. Mostro, falo que é errado e que não é só entre namorados. É no geral”, afirma Eliana. “Se eu não tratar disso com eles, aparecerá de uma forma muito pior. A violência é cultural, questão de educação. Não tem outra forma de combater, senão educando melhor”, defende a arquiteta.

 

Exemplo

A atitude de uma mãe de Porto Alegre repercutiu nas redes sociais na última semana. Foram mais de 50 mil reações ao post que ela fez com uma foto do filho, Diogo, 4, com um vaso de flores nas mãos. Tavane Corrêa Carvalho, 27, buscou a criança na escola e, lá, a professora avisou que ele tinha empurrado uma coleguinha na escada. Ambos seguiam em fila, e ele a empurrou para passar. Ninguém se machucou, mas a atitude não passou batida. Tavane conversou com Diogo, colocou-o de castigo e, no dia seguinte, comprou o presente para ele entregar, como pedido de desculpas, à coleguinha.

“Foi a primeira vez que isso aconteceu. Pensei e conversei com ele, sério. Pedi para que me olhasse nos olhos e expliquei que não podia bater, empurrar os colegas. E ressaltei a questão das meninas. Ele pediu desculpas, rezou, mas não amoleci, mantive o castigo. No outro dia, ele escolheu a cor das flores, abraçou a garota e se desculpou”, conta. Tavane vem de uma família majoritariamente de mulheres. São 13 filhas e a mãe. Só Diogo de menino. “Aqui, não aceitamos nada, nenhuma dessas atitudes violentas de homem para mulher. Tenho isso em casa e passo para ele. Ninguém nasce batendo em mulher. Desde criança é que moldamos os adultos”, justificou.

Para a socióloga Lourdes Bandeira, não existe um caminho para a transformação cultural, mas há métodos que devem ser criados de acordo com cada grupo, respeitando as diferenças. “O que precisa como elemento constitutivo é considerar a diversidade. As crianças têm todos esses aspectos, racial e socioeconômico, por exemplo. Uma questão que estão discutindo equivocadamente é a da ideologia de gênero. Não existe isso. O que existe é uma sociedade que é composta pela pluralidade”, indica Lourdes.

 

Três perguntas para

Juiz Ben-Hur Viza, um dos coordenadores do Centro Judiciário da Mulher do TJDFT e do maria da penha vai à escola

 

Quando o projeto foi criado?

Em julho de 2014, a partir de várias experiências e atividades com alunos das escolas públicas de diversas idades. Dessas experiências, percebeu-se a necessidade de se estruturar um projeto que pudesse formar e instrumentalizar os profissionais da educação sobre a Lei Maria da Penha a fim de que as intervenções e discussões com os alunos fossem mais efetivas.

 

Qual é a importância de falar sobre violência doméstica com crianças e adolescentes?

No que diz respeito à prevenção, a prioridade é desconstruir a cultura machista e do patriarcado. Quanto ao enfrentamento, são realizadas oficinas e reuniões de trabalho que possibilitam a construção de um diagnóstico quanto à aplicação da norma e à proposição de soluções.

 

Quais mudanças poderemos ter na sociedade com esse tipo de projeto?

Espera-se que a nova geração não repita os estereótipos da cultura machista, refletindo em uma redução significativa de todas as formas de violência e em uma sociedade de paz em casa. Além disso, o projeto estimula a articulação da rede de proteção às mulheres em situação de violência doméstica e familiar, possibilitando que um maior número de atores participem no sistema de enfrentamento e prevenção.