Correio braziliense, n. 19441, 17/08/2016. Política, p. 2

Decisão beneficia prefeitos pelo país

Entidades reclamam que definição do Supremo de que candidatos só podem ser barrados se tiverem as contas rejeitadas pelas câmaras municipais corre o risco de provocar uma onda geral de “imunização”. Cofres públicos deixariam de ser ressarcidos em até R$ 3 bilhões

Por: João Valadares

 

Mais de 5 mil prefeitos e ex-prefeitos ordenadores de despesas, passíveis de impugnação da candidatura com base na Lei da Ficha Limpa por terem contas rejeitadas por tribunais de contas estaduais nos últimos oito anos, não ficarão inelegíveis e podem participar normalmente das eleições municipais. O número é parte do levantamento, ainda em consolidação, da Associação dos Tribunais de Contas do Brasil (Atricon). A “imunização” ocorreu após decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), na semana passada, que determinou que, agora, os candidatos só podem ser barrados se tiverem as contas reprovadas pelas câmaras municipais. O diagnóstico aponta ainda que, com a nova determinação, aproximadamente R$ 3 bilhões podem deixar de ser ressarcidos aos cofres públicos se os gestores forem inocentados em votação no Legislativo local.

O presidente da Atricon, Valdeci Pascoal, afirma que “a decisão representa um imenso retrocesso no controle das contas governamentais e vai na contramão dos esforços populares e suprapartidários de combate à corrupção e de moralidade na gestão dos recursos públicos”. Ele revelou ao Correio que o levantamento completo ainda não foi concluído e que o estrago pode ser ainda maior.

“Na prática, a decisão representa uma imunização de mais de 5 mil prefeitos e ex-prefeitos condenados pelos tribunais de contas e compromete o ressarcimento de R$ 3 bilhões. São dados de todos os tribunais espalhados pelo país nos últimos oito anos. Significa uma espécie de habeas corpus preventivo”, afirmou. Ele explicou que o diagnóstico não fez o cruzamento de quantos prefeitos e ex-prefeitos condenados são efetivamente candidatos nestas eleições. “Importante lembrar que, com base nesse número levantado, nem todos obrigatoriamente seriam impugnados. Seriam potenciais impugnáveis em razão das contas irregulares. Quem faz esse crivo é a Justiça Eleitoral. Mas, com a decisão do STF, já fica decidido que nenhum desses será impugnado.”

Pascoal ressaltou que a rejeição das contas é o principal motivo hoje para a inelegibilidade. “Além de esvaziar, em grande medida, as competências constitucionais dos tribunais de contas, no que se refere à aplicação de sanções e determinação de ressarcimento aos prefeitos que causaram prejuízos ao erário, a decisão do STF fere de morte a Lei da Ficha Limpa, considerando que a rejeição de contas pelos tribunais, e não pelas câmaras, constitui o motivo mais relevante para a declaração de inelegibilidades pela Justiça Eleitoral, que atinge 84%”, informou.

O juiz Marlon Reis, um dos idealizadores da Lei da Ficha Limpa, também criticou a decisão. Ele disse que ainda há espaço para tentar reverter a situação. “Essa decisão atacou o coração da Ficha Limpa, mas temos a expectativa de que seja revertida. O STF já havia declarado a constitucionalidade da norma da Lei da Ficha Limpa em relação aos ordenadores de despesas. Assistimos com surpresa à mudança de entendimento. Estamos discutindo meios de provocar a mudança. Não consideramos o jogo terminado”, informou.

 

“Efeito nocivo”

Na próxima segunda-feira, Marlon Reis e Valdeci Pascoal se reúnem, em Brasília, com o procurador-geral da República, Rodrigo Janot, para avaliar a situação e as estratégias a serem tomadas a partir de recursos que devem clarear a decisão do Supremo. “A decisão já tem um efeito nocivo para estas eleições. Os juízes eleitorais do Brasil inteiro seguiram a determinação no período de registro das candidaturas (que se encerrou na segunda-feira). Agora, um juiz dificilmente considerará que a rejeição das contas por um tribunal de contas estadual já implica na inelegibilidade”, afirmou o magistrado.

O presidente da Confederação Nacional dos Municípios (CNM), Paulo Ziulkoski, salientou que a entidade não se posicionou oficialmente sobre a questão. No entanto, em seu entendimento pessoal, a medida parece justa e constitucional. “Quem julga as contas é o Poder Legislativo. O próprio TCU, quando julgou as contas da presidente afastada, Dilma Rousseff, não foi a última decisão. Tanto é que todo o processo dela ainda está rolando. O parecer dos tribunais é válido até que as câmaras apreciem. Se não obtiverem dois terços dos votos, fica valendo a decisão técnica do tribunal de contas. Esse é o sentido da democracia. O aspecto político paira acima do técnico. O Tribunal de Contas é órgão auxiliar”, comentou.

No julgamento do STF, por seis votos a cinco, a maioria dos ministros entendeu que a decisão dos tribunais que desaprova as contas do governo deve ser tratada apenas como um parecer prévio, que deve ser apreciado pelos vereadores. Para os ministros, o Legislativo local tem a palavra final sobre a decisão que rejeita ou aprova as contas. Dessa forma, somente após decisão desfavorável dos vereadores, um candidato pode ser impedido de concorrer às eleições. A Lei da Ficha Limpa diz que as pessoas que tiverem as contas relativas ao exercício de cargos ou funções públicas rejeitadas por irregularidade insanável ficam inelegíveis por oito anos a partir da decisão.

A questão chegou ao Supremo por meio de um recurso apresentado por José Rocha Neto, candidato a deputado estadual em 2014. A candidatura dele acabou barrada por ter as contas rejeitadas pelo Tribunal de Contas do Ceará no período em que foi prefeito de Horizonte, no Ceará. A Câmara Municipal não seguiu o parecer do tribunal e aprovou as contas.

 

Frase

“Essa decisão atacou o coração da Ficha Limpa, mas temos a expectativa de que seja revertida. O STF já havia declarado a constitucionalidade da norma da Lei da Ficha Limpa em relação aos ordenadores de despesas”

Marlon Reis, juiz e um dos idealizadores da Lei da Ficha Limpa