Fidel, 90 anos

 

06/09/2016
Cristovam Buarque

 

Entre os líderes mundiais que tive o privilégio de conhecer pessoalmente, escolheria Fidel Castro como aquele que me provocou maior surpresa. Foi como se fosse apresentado a um personagem mítico, depois de cinco décadas conhecendo-o apenas por livros de história, jornais, revistas. Ainda adolescente, li o discurso feito por ele durante seu julgamento, com o título de A história me absolverá. No lugar de se defender diante da ditadura, escolheu acusar seus juízes prepostos do ditador Fulgêncio Batista; e apresentou seus sonhos para o futuro de Cuba.  Foi ali que aprendi que política exige coragem, e só faz sentido mudar a realidade e transcender na história, se for capaz de superar as injustiças, e que não se justifica tomar o poder para acomodar-se nele. Acompanhei pelos jornais de Recife sua guerrilha até a vitória. Ele foi o herói da minha geração de latino-americanos: tanto como líder de revolução, quanto como líder da resistência às forças dos Estados Unidos, e sobretudo como líder de um governo comprometido com a justiça social, sem perder o vigor transformador.

Durante o longo período da Guerra Fria, Cuba foi exemplo da resistência ao imperialismo, mas também da luta contra as explorações promovidas pela selvageria dos sistemas econômicos da América Latina, e tem sido o exemplo de compromisso com educação, saúde e igualdade. A erradicação do analfabetismo, a implantação de um sistema exemplar de saúde para todos e a construção de um sistema educacional de qualidade, e com a mesma qualidade para todos, são feitos ainda maiores do que o sucesso da luta na guerrilha. Apesar de todas as dificuldades que sofre, especialmente em decorrência do bloqueio econômico de mais de 50 anos imposto pelos Estados Unidos, Cuba ainda é um exemplo de qualidade e equidade no meio da tragédia social do nosso continente. O heroísmo na luta e na construção de um novo país nortearam a militância política de muitos da minha geração, mesmo entre os que se recusaram ao uso da luta armada, da adoção de partido único e da pena de morte.

Na primeira vez que estive em Cuba, em 1982, como consultor da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura ( a FAO), fui recebido de madrugada no aeroporto por um motorista de nome Miro. Durante todo o mês do meu trabalho, mantivemos a respeitosa relação de chefe e servidor, mas com uma igualdade raramente encontrada no Brasil e com um diálogo sobre história, filosofia e política cuja intensidade não se vê no Brasil, nem mesmo entre pessoas com instrução. Na segunda vez que fui à Ilha, em 1996, procurei Miro, e ele já estava com todas as filhas formadas, sem que isso lhe parecesse excepcional. Ao voltar a Brasília, a aeromoça da empresa Cubana de Aviacion, ao ver foto minha com Fidel ao lado de ministros do governo, apontou para um deles e disse: “É o meu marido”. Este é um exemplo da Cuba social que Fidel fez: os motoristas são educados, falam de filosofia e formam seus filhos na universidade, e as esposas de ministros trabalham como qualquer cidadã.

Ainda durante a segunda visita a Cuba, jantei no gabinete de trabalho de Fidel. Conversamos sobre a socialdemocracia do governo Fernando Henrique Cardoso, sobre os projetos de meu governo no Distrito Federal. Disse-lhe que o problema da América Latina não foi as “veias abertas” que Eduardo Galeano denunciou como produto do imperialismo, mas os “neurônios tapados”, pela negação de educação de nossas crianças por parte de nossas elites nacionais. No dia seguinte, ele mandou um recado dizendo que eu precisava falar também de saúde e não só de educação.

O tempo nos ensinou que o regime cubano demorou a fazer certas transformações necessárias para se adaptar ao mundo da globalização, da queda do Muro de Berlim e do fim da Guerra Fria; demorou a entender que o socialismo deve construir uma sociedade justa, graças à uma economia eficiente e isto exige respeitar regras econômicas, conviver com o mercado, com a propriedade privada dos meios de produção e com o lucro das empresas. Em parte, por influência cubana e em parte por conservadorismo, toda a esquerda latino-americana ficou com essa mesma falta de sintonia. Mas, o mito Fidel transcende discordâncias. Seus 90 anos merecem ser comemorados como de um dos grandes nomes da história universal. Aliados e adversários concordam que ele é um dos raríssimos latino-americanos que ficarão na história da humanidade. Por isso, aos 90 anos, Fidel continua como símbolo para minha geração.

 

Correio braziliense, n. 19461, 06/09/2016. Opinião, p. 11