Valor econômico, v. 17, n. 4119, 26/10/2016. Política, p. A6

Temer tenta arbitrar conflito entre Legislativo e Judiciário

Cármen Lúcia: presidente do STF solidarizou-se com juiz atacado pelo presidente do Senado e alegou problemas de agenda para não se reunir com Renan e Temer

Por Vandson Lima, Andrea Jubé e Carolina Oms

 

Uma verdadeira crise institucional entre os Poderes Legislativo e Judiciário pode estar a caminho após a presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministra Cármen Lúcia, recusar o convite para uma reunião hoje, às 11h, com os presidentes do Senado, Renan Calheiros (PMDB-AL), da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ) e o presidente da República Michel Temer.

A iniciativa de chamar o encontro foi de Temer, para tentar "harmonizar os Poderes", após Renan disparar uma série de ataques a representantes da Justiça, por causa da prisão de policiais legislativos sob seu comando. Ontem, Cármen Lúcia, que alegou já estar com a agenda cheia hoje, rebateu as críticas do presidente do Senado e se solidarizou com o juiz Vallisney Souza de Oliveira, chamado por Renan de "juizeco".

A presidente do Supremo disse que os juízes exigem "respeito" por parte do Legislativo e Executivo. "Todas as vezes que um juiz é agredido, eu e cada um de nós juízes é agredido. E não há a menor necessidade de numa convivência democrática livre e harmônica, haver qualquer tipo de questionamento que não seja nos estreitos limites da constitucionalidade e da legalidade", disse ontem a ministra em sessão do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), sem citar nomes. Cármen Lúcia lembrou que a Constituição determina que os Poderes da República sejam independentes.

Já o presidente do Senado, por sua vez, atuou para esvaziar uma outra reunião, que Temer quer promover na sexta-feira com os chefes dos três Poderes e o ministro da Justiça, Alexandre de Moraes, para discutir a segurança pública. Cármen, em nova contrariedade a Renan, mantém a previsão de comparecer.

"Terei muita dificuldade de participar de qualquer encontro com o ministro da Justiça, que protagonizou um espetáculo contra o Legislativo", atacou Renan, que ironizou a possibilidade de Moraes participar de encontros dessa magnitude. "Ele representa qual poder? Polícia Federal não me parece ser poder do Estado". Na segunda-feira, Renan Calheiros já havia chamado Moraes de "chefete de polícia" e reclamado para Temer da atuação do ministro no episódio das prisões.

O Valor apurou que lideranças do PMDB, próximas a Renan, pediram o afastamento de Moraes. Mas o Palácio do Planalto afirma que, por enquanto, ele segue no cargo. Além disso, auxiliares de Temer ponderam que Renan "perdeu a razão" ao agredir representantes da justiça.

Renan minimizou as críticas a ele feitas por Cármen Lúcia, considerando como apenas uma defesa da ministra do Poder a ela subordinado - tal como ele próprio fizera. "Concordo com a manifestação. Ela fez exatamente como presidente do STF o que eu fiz como presidente do Senado".

Sem admitir ter cometido qualquer excesso, Renan cobrou da ministra uma repreensão à atitude do juiz Vallisney. "Acho que faltou uma reprimenda ao juiz. Toda vez que alguém da primeira instância usurpa competências do Supremo, quem paga é o legislativo. E sinceramente, não dá para continuar assim".

O senador confirmou que vai dar entrada hoje em uma ação judicial para definição de competência das atribuições no Poder Judiciário.

Alinhado com Renan, Rodrigo Maia classificou como "equivocada" e "duvidosa" a decisão do juiz ao autorizar uma operação da Polícia Federal dentro do Senado. "Acho que Renan tomou a decisão certa ao encaminhar essa reclamação ao Supremo".

Há o temor no governo de que a crise venha a atrapalhar o calendário já acordado para votação no Senado da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que institui um teto para os gastos públicos. Renan garantiu que, por ora, o cronograma está mantido.

A Ajufe, associação de juízes federais, divulgou nota na qual afirma ter "repúdio veemente" às declarações de Renan, enquanto um grupo de juízes federais do Distrito Federal manifestou "profunda indignação e repulsa".

"Impressiona saber que o presidente do Senado e do Congresso Nacional, sob o equivocado e falacioso argumento de um "Estado de exceção", e com sério comprometimento das relevantes atribuições de seu cargo, permita-se aviltar o tratamento respeitoso devido a outra autoridade que, como ele, é também membro de Poder, isso sim a criar um cenário de instabilidade e a colocar em severa dúvida se é o Estado republicano, democrático e de direito que realmente se busca defender", disseram os juízes federais do DF. (Colaboraram Fabio Murakawa, Raphael Di Cunto, Thiago Resende e Letícia Casado)

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Presidente e Renan testam limites

Por: Raymundo Costa

 

Na noite de segunda-feira o presidente do Senado, Renan Calheiros (PMDB-AL), atravessou a rua que separa o Congresso do Palácio do Planalto para conversar com o presidente Michel Temer sobre crise institucional, mas não teve chance de uma conversa a sós, como desejava. O gabinete do presidente estava lotado, o que deixou Renan ainda mais nervoso.

Pela manhã, o senador chamara o ministro da Justiça, Alexandre Moraes, de "chefete" da Polícia Federal, e de "juizeco" o titular da 10ª Vara Federal de Brasília, Vallisney de Souza Oliveira, que autorizou a prisão de integrantes da guarda legislativa do Senado, episódio que está no centro da colisão atual entre os Poderes. Renan queria a cabeça do primeiro e pedir um posicionamento dos chefes do Executivo, Legislativo e do Judiciário sobre o problema institucional.

Nem passa pela cabeça de Temer criar um problema com o PSDB e demitir o ministro da Justiça só porque Renan quer, por mais que o presidente da República esteja preocupado em dispensar todas as mesuras ao presidente do Senado, para onde vai em seguida a PEC 241, depois de aprovada em segundo turno na Câmara dos Deputados. No Senado é Renan quem deve impor o ritmo da tramitação da proposta que o governo espera votar, no máximo, no início de dezembro. Em dois turnos. Mas já faz tempo que Temer está matutando com seus auxiliares sobre uma reunião dos chefes dos três Poderes. O presidente também acha que há uma certa bagunça institucional que merece atenção. Renan sabia disso. No domingo, depois da ação da PF no Senado, ele esteve por horas com Temer e outras pessoas discutindo a conjuntura.

Renan atravessa momento difícil. Em fevereiro acaba seu mandato na presidência do Senado, e ele não tem direito a nova reeleição. Não gostaria de ser ministro, subordinado a Temer - e Temer não o chamaria para uma pasta como a da Justiça, por exemplo. Uma alternativa é voltar a ser líder do PMDB, o que o manteria no centro do triunvirato pemedebista que comanda o Senado - ele próprio, o atual líder Eunício Oliveira e o presidente do PMDB, Romero Jucá. Mas sobretudo Renan é alvo de nove processos no Supremo Tribunal Federal (STF), suspeito de envolvimento no esquema de corrupção da Petrobras. Sobre isso, não há nada que Temer possa fazer por ele, assim como não teve como ajudar o ex-deputado Eduardo Cunha, que se queixa de abandono por parte do presidente.

A Operação Métis, desencadeada na sexta-feira, 21, pela Polícia Federal com autorização do juiz Vallisney, foi uma oportunidade para o presidente do Senado exercitar uma prática na qual tem se revelado um mestre: criar um enorme tumulto a sua volta capaz de desviar a atenção daquilo que não lhe interessa e também mostrar sua própria importância para o jogo político. Esticar a corda para depois distensionar. Apenas para citar um fato recente, foi Renan, e não Eduardo Cunha, quem primeiro mostrou os dentes para Dilma Rousseff, ao devolver a medida provisória que reduzia as desonerações, uma das propostas cruciais do pacote de ajuste do ex-ministro Joaquim Levy. Depois, Renan tornou-se um dos principais aliados da ex-presidente e foi o fiador da manutenção de seus direitos políticos, no impeachment. A operação da PF deu a Renan um discurso junto a sua base, os senadores.

A entrada de policiais para prender agentes legislativos no Senado também chocou Temer e seus principais auxiliares. Os senadores, em geral, consideraram um atropelo a intervenção de um juiz de primeira instância em assunto que seria da alçada do STF. Renan tem a solidariedade da Casa, mesmo que alguns senadores suspeitem que ele possa ter transformado a polícia legislativa numa espécie de guarda pretoriana. O que ninguém concordou foi com os termos que o presidente do Senado usou para manifestar indignação - "chefete" e "juizeco". Uma contradição em termos, já que Renan Calheiros, para defender o Legislativo, investiu e ofendeu os outros dois Poderes - Executivo e Judiciário. Antes, o ministro da Justiça defendera os seus, a Polícia Federal; e ontem a presidente do STF, a ministra Cármen Lúcia, os "juizecos". Esse tipo de conflito institucional, quando cada Poder reage corporativamente, preocupa Temer e auxiliares.

Para o núcleo do governo Temer, a escalada na instabilidade entre os Poderes compromete a própria confiança no país, num momento de enorme esforço para a recuperação da economia.

Saindo do Palácio do Planalto, Renan Calheiros foi para a residência oficial do presidente do Senado, onde também havia muita gente. Um entra e sai de senadores e integrantes do governo, pessoas próximas a Temer. As conversas rolaram até a madrugada. Renan lembrou-se de que Temer marcara uma reunião entre os chefes de Poderes para a sexta-feira a fim de discutir a segurança pública. O presidente do Senado jogou a sua carta: não iria ao encontro pois não sentaria à mesma mesa que Alexandre Moraes, o ministro da Justiça que gostaria de demitir. Ontem cedo Temer teve um relato detalhado da conversa e resolveu agir: telefonou para Cármen Lúcia e para o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, para acertar a reunião. Sem Moraes. Depois telefonou para Renan. O presidente do Senado pareceu satisfeito.

O histórico de desavenças entre Temer e Renan é longo e conhecido. Assim como chamou o ministro da Justiça de "chefete" e um juiz federal de "juizeco", o presidente do Senado já brindou o presidente com o apelido de "mordomo de filme de terror", parafraseando um senador igualmente sem papas na língua, Antonio Carlos Magalhães, morto em 2007. Na Presidência da República, sobram motivos para Temer paparicar o senador alagoano. Ele é o senhor da pauta do Senado, onde passa a tramitar agora a PEC do teto dos gastos. Com três feriados entre o fim de outubro e o fim da primeira quinzena de novembro, além da reta final das eleições, sobra pouco tempo para uma tramitação mais tranquila da PEC.

Se algum senador ou grupo de senadores aliados insatisfeitos resolver mandar algum "recado" para o Palácio do Planalto, o que não é incomum, o cronograma das reformas pode ser comprometido. Renan quer mostrar sua importância; o governo precisa da boa vontade e do esforço de Renan para manter o Congresso votando e aprovando as propostas do ajuste, a fim de mostrar que tem o controle da situação - apesar das nuvens cinzentas que pairam sobre a capital do país.