Um processo por assédio moral a cada 55 horas

 

23/10/2016
Antonio Temóteo

 

Servidora do Ministério da Saúde há 27 anos, Isa Maria Araújo Lopes, 53, nunca soube o   que era assédio moral até sentir na pele humilhações e tortura psicológica de dois   chefes. Apesar de ser enquadrada no nível médio, ela cursou faculdade e fez pós-graduação na Universidade de Brasília (UnB) para prestar um serviço de boa qualidade. Mas era preterida pelos superiores em diversas oportunidades. Os problemas começaram em 2002. As   viagens ao exterior para representar a pasta eram feitas por consultores terceirizados, ato proibido pela administração pública federal.

O nível de constrangimento chegou a tal ponto que, durante a reorganização no setor onde   trabalhava, Isa foi isolada em um cubículo sem ventilação para que não tivesse acesso à   equipe de trabalho. As informações sobre as rotinas da área não eram compartilhadas com a   servidora para que não recebesse tarefas.

Sem entender o motivo das humilhações, ela entrou em depressão, engordou e perdeu a   alegria de ir todos os dias para o ministério. Chegou a ser colocada à disposição dos   Recursos Humanos, sem uma explicação razoável. “Precisei procurar um psicólogo e um   psiquiatra. Tomei remédios e só não piorei porque busquei Deus. Não entendia por que   passava por toda aquela situação”, relembra.

Orientada por outros colegas, passou a documentar os atos dos chefes e criou coragem para   fazer uma denúncia na Ouvidoria-Geral da União (OGU), após quase cinco anos de maus-  tratos. A queixa foi encaminhada ao Ministério da Saúde, que determinou a abertura de uma   sindicância. Durante a apuração preliminar, ficou constatada a necessidade de ser   instaurado um processo administrativo disciplinar, que ainda não foi concluído pela   pasta. Paralelamente a isso, Isa decidiu, em 2008, encaminhar uma denúncia ao Ministério   Público Federal (MPF), que submeteu o caso à Justiça.

 

Punição

Os dois foram condenados em 2013 por assédio moral e improbidade administrativa. O juiz   determinou o pagamento de multa, perda dos direitos políticos por três anos, a perda de   função pública e proibição de contratar com o Poder Público ou receber benefícios e   incentivos fiscais. “Hoje encorajo todas as pessoas a denunciarem se sofrem assédio   moral. Atualmente, estou em um lugar que eu gosto e sou bem tratada, mas sofri demais até   chegar aqui”, diz. Procurado, o Ministério da Saúde informou que o processo   administrativo disciplinar já foi encerrado e, atualmente, encontra-se em fase final de   construção do parecer jurídico.

Casos como o de Isa são comuns em todo o país, mas o medo de denunciar, a falta de   informações sobre o tema e o desconhecimento da população sobre os danos causados pela   prática dificultam a reação das vítimas. Dados inéditos obtidos pelo Correio com a   Controladoria-Geral da União (CGU) mostram que, entre 2014 e 2016, cresceu o número de   processos administrativos instaurados para apurar os maus-tratos psicológicos no ambiente   de trabalho.

Há dois anos, 90 processos foram abertos para investigar denúncias. Naquele mesmo ano,  houve cinco advertências aplicadas como punição, dois servidores destituídos de funções   de comissão e outros dois, suspensos. Em 2015, a quantidade de apurações cresceu 51,1% e   chegou a 136 casos, o que significou uma média de um processo aberto a cada 62 horas. No   ano passado, foram aplicadas quatro advertências, duas demissões efetivas de cargo, duas   destituições de cargo de confiança, nove suspensões e três multas.

 

Aumento

Entre janeiro e setembro de 2016, 118 processos administrativos foram instaurados pela   CGU sobre o tema assédio moral, uma média de um caso a cada 55 horas. Neste ano, quatro   advertências foram aplicadas, três suspensões e uma multa. Além das apurações, 18   denúncias foram feitas em ouvidorias do Executivo sobre o tema assédio moral em 2015 e   outras 89 até setembro de 2016. O chefe de gabinete da Corregedoria-Geral da União (CRG),   Armando de Nardi Neto, explica que os dados de processos disciplinares, bem como as   sanções decorrentes das apurações passaram a ser classificadas por assunto somente em   2013. A CRG e a OGU são parte da CGU.

Uma dificuldade enfrentada nas apurações é que a Lei nº 8.112 não define o assédio moral,   o assédio sexual e o racismo como infrações. Apesar disso, o chefe de gabinete da CRG   destaca que a norma determina penalidades para condutas específicas, as quais podem, a   depender das circunstâncias, caracterizar o assédio. “Os atos que caracterizam assédio   são penalizados com base no descumprimento de deveres e proibições previstas em lei. São   deveres do servidor manter conduta compatível com a moralidade administrativa e tratar   com urbanidade as pessoas”, destaca.

Além disso, o artigo 132 da lei determina que a demissão de um servidor será aplicada em   casos de incontinência pública e conduta escandalosa na repartição. Nardi argumenta que   as sanções aos atos de assédio representam uma forma eficaz de inibir a prática, uma vez   que demonstram a não aceitação da prática na administração pública. “Mas entendemos que   ações preventivas e de conscientização também são importantes na prevenção desse tipo de   prática”, alerta.

O procurador-geral do Trabalho, Ronaldo Curado Fleury, considera que o tema precisa ser   amplamente debatido, já que muitos trabalhadores preferem se submeter ao assédio e manter   o emprego a denunciar. Em outros casos, desconhecem que os maus-tratos são   irregularidades e podem ser punidos. Para ele, o Legislativo precisa aperfeiçoar as   normas existentes no país para punir quem comete o crime. “O assédio moral nunca ocorre   com uma pessoa. Ele atinge toda a coletividade, ainda que direcionado a uma pessoa”,   alerta.

 

Correio braziliense, n. 19508, 23/10/2016. Economia, p. 8