Sem vida fácil nos EUA

 

30/10/2016
Penny Lee
David J. Kramer
Gabriela Freire Valente

 

A queda de braço entre Hillary Clinton e Donald Trump, na briga pela sucessão de Barack Obama, entrou para a história política dos Estados Unidos como uma das disputas mais intensas e polarizadas das últimas décadas. Diante dos desafios impostos por um cenário em que o eleitor tem demonstrado profunda insatisfação com a tradicional classe política, e no qual ambos os candidatos à Casa Branca amargam índices elevados de rejeição, a estrategista democrata Penny Lee e o advogado republicano David J. Kramer observam que os resultados da votação, independentemente de quem saia vitorioso, representarão um momento de reavaliação de rumo para os dois grandes partidos. “É uma eleição fascinante, em que presunções históricas sobre os padrões dos eleitores estão sendo viradas de cabeça para baixo”, observa Lee.

Em visita ao Brasil para uma série de eventos promovidos pela Embaixada dos Estados Unidos, a dupla de militantes políticos falou ao Correio sobre os desafios do próximo presidente, em uma atmosfera política pouco confortável. Diante das mudanças no perfil demográfico dos americanos, Kramer observa que republicanos e democratas terão de se adaptar rapidamente, se quiserem atender às necessidades do eleitorado. Quanto ao próximo presidente, enfrentará o desafio de governar em um ambiente de divisão. Além dos obstáculos impostos pela antipatia da opinião pública, sem falar nos possíveis entraves com o Congresso, o representante republicano alerta que o próximo mandatário poderá tornar-se refém das condições impostas pela economia americana.

 

A insatisfação com o establishment político e os altos índices de rejeição são indício de que algo tem de mudar no sistema político?

Lee — Há uma grande insatisfação entre os americanos e uma noção de que Washington e os nossos líderes, em geral, não têm trabalhado por eles, especialmente depois da crise financeira de 2008. Há a impressão de que eles estavam protegendo os ricos e passando políticas para tornar melhor a vida deles próprios. Não sei se isso se traduz em uma reforma completa do sistema político, mas a raiva se direciona  a um político individual e à vontade de eleger pessoas diferentes, que vão a Washington para fazer mudanças e romper o sistema, mais do que a revisar a estrutura política.

Kramer — Concordo. Não acho que vamos ver alterações sistêmicas no sistema político. O lugar mais provável para vermos mudanças é na mensagem e no tipo de candidato que concorre a vagas eletivas. Quanto mais candidatos antiestablishment concorrendo de forma bem-sucedida, mais provável que vejamos mudanças nas mensagens e plataformas dos partidos. Se isso vai resultar na emergência de um terceiro partido? Acho que não. Pelo menos historicamente, o que acontece nos EUA é que mudanças como essas surgem de dentro dos partidos, e os candidatos que lideram nossos partidos são forçados, em muitas ocasiões, a se adaptar às alterações no eleitorado.

 

Por que é tão difícil para os atores políticos dar mais apoio a uma candidatura de terceira via, mesmo nesse ambiente de insatisfação?

Lee — Não acho que os dois principais partidos dariam esse apoio, por estarem confortáveis com a possibilidade de eleger quem eles quiserem dentro de suas fileiras. Mas começamos a ver o surgimento de mais vozes independentes. A tecnologia tornou mais barato ter o próprio Twitter e ir construindo uma lista de seguidores e um canal de mídia. Ainda é difícil concorrer como independente ou como candidato de terceira via, mas começamos a ver o aumento disso. Ter cinco candidatos à presidência, neste ano, é incomum, algo que, suspeito, vamos ver cada vez mais. Então, começamos a ver alguma mudança, mas eu diria que ela será vagarosa.

Kramer — Nosso sistema é desenhado para encorajar dois partidos fortes constitucionalmente, legislativamente. Temos hoje muitos partidos políticos diferentes, poucos deles a nível nacional, mas em alguns estados há uma presença forte de partidos de terceira via. Na nossa história, tivemos várias ocasiões em que um candidato de terceira via foi bem-sucedido em ganhar uma grande porcentagem de votos — a última vez foi em 1992, com Ross Perot. Periodicamente, essa insatisfação se manifesta. Mas o nosso sistema é estruturado de uma forma que acaba sendo muito difícil alguém se candidatar sem que faça parte de um dos dois partidos. O papel mais provável, para um candidato de terceira via, é o de estraga-prazeres. Em 2000, Ralph Nader concorreu pelo Partido Verde na Flórida. Como era improvável que republicanos votassem pelos verdes, se Nader não tivesse se candidatado, Al Gore (então candidato democrata) poderia ter vencido na Flórida. Neste ano, candidatos de terceira via podem roubar votos o suficiente de um dos candidatos de modo a afetar o resultado da eleição.

 

Bernie Sanders foi capaz de energizar os eleitores jovens de uma forma que Hillary não foi, e a senadora Elizabeth Warren tem se fortalecido. Hillary deve temer um racha no Partido Democrata?

Lee — Sempre recordo que 40% da oposição ao Obamacare (como ficou conhecido o programa de assistência médica do governo federal) vem dos democratas progressistas, porque o plano não foi longe o suficiente. Já começamos a ver Hillary modificar algumas de suas posições, e uma das coisas pedidas a ela por Sanders foi que trabalhe na plataforma democrata — que eu considero, possivelmente, a mais progressista que já produzimos, como partido. Acho que haverá muitos no partido, especialmente da esquerda, que pegarão no pé dela. Há muito ceticismo sobre Hillary e sua habilidade de governar, ou sobre a perspectiva da qual ela governará. E eles não ficam tímidos em expressar o que sentem. Ela tem um desafio pela frente, se vencer, tanto dentro do partido quanto para liderar todo o país.

 

Analistas sempre destacam as dificuldades do Partido Republicano com os jovens e as minorias, e Trump parece não ajudar...

Kramer — Isso não é necessariamente verdade. Tivemos mais pessoas votando nas primárias deste ano do que em qualquer outra da história das primárias republicanas. Trump trouxe às urnas gente que nunca tinha votado antes. Acho que a ideia da morte do Partido Republicano é exagerada. Conseguimos, em mais de 150 anos, continuar a mudar em períodos curtos de tempo. Ao longo da história, nosso país tem fluído entre ser mais de centro-direita e mais de centro-esquerda. Acho que tivemos um período mais para o centro-direita. Se agora será mais para o centro-esquerda, e por quanto tempo isso vai durar, depende do balanço para a direção oposta. Para o Partido Republicano, o resultado desta eleição terá muito a ver com a direção na qual o partido seguirá. Acho que é o mesmo para o Partido Democrata, mas para nós é o oposto: se Trump perder a eleição, acredito que veremos o establishment dizer: ‘Viram? Nós avisamos. Precisamos voltar ao caminho em que estávamos antes’. Se Hillary perder, há o potencial de os progressistas dizerem que o partido (democrata) estava no caminho errado, e que precisa se mover para a esquerda. Se Hillary vencer, mesmo que haja desafios da esquerda, o partido se manterá mais estável com ela como presidente e líder. Se Trump vencer, há muito mais oportunidades de mudança para o partido (republicano). Ele seria capaz de reformar o partido para os moldes do tipo de eleitor que atraiu. Será um período interessante, e ambos os partidos terão de se adaptar e ser ágeis para atender às necessidades do eleitorado em mutação.

 

O partido será capaz de se recuperar das divisões provocadas pela candidatura de Trump?

Kramer — Lembre-se que de quase 50% das pessoas, no Partido Democrata, não votaram por Hillary. É o mesmo percentual do lado republicano. Eu acredito que a vitória cura as feridas mais rápido do que a derrota. Então, o resultado da eleição terá muito a ver com isso. Mas acho que essa percepção de que o partido está amargamente dividido e terá trabalho para sobreviver é exagerada. Os republicanos têm ido muito bem nas eleições de governadores, legisladores estaduais e deputados federais. Mesmo se os democratas tomarem o controle do Senado, os republicanos vão recuperá-lo em dois anos, por causa dos estados que terão eleição (para senador) em 2018. Mas uma eleição nacional é diferente, porque é focada na personalidade do candidato. Isso não se traduz na habilidade do partido para ser bem-sucedido ao redor do país.

 

Como a mudança no mapa político, com possível vitória de Hillary em estados republicanos, pode afetar a dinâmica política no país?

Kramer — Depende da razão pela qual ela venha a vencer nesses estados. A questão é se é uma mudança relacionada ao candidato escolhido pelos republicanos ou se é uma mudança nas convicções das pessoas. Se for de natureza ideológica e estrutural, então representa um problema muito mais significativo para nós. Um bom exemplo são as mulheres com ensino superior, que tradicionalmente votam pelos republicanos, mas que estão dando mais atenção a Hillary, por causa das coisas que Trump disse e fez. A questão é se isso vai durar.

Lee — Concordo que teremos de esperar pelo resultado para entender o que isso significa. Também teremos de ver se o voto se divide, com eleitores escolhendo democratas para a presidência e republicanos no Senado. Da mesma forma, se Hillary perder em Ohio ou Iowa, o que isso significará para o Partido Democrata? Por que esse afastamento dos homens brancos da classe trabalhadora? É uma eleição fascinante, em que presunções históricas sobre os padrões dos eleitores estão sendo viradas de cabeça para baixo. Algumas são movidas pelos candidatos, outras por frustração.

 

Como a forte polarização e os altos índices de rejeição aos candidatos podem afetar a agenda do próximo presidente?

Lee — O cenário mais provável é que Hillary ganhe a presidência com um Congresso dividido. Uma frente será cicatrizar o país. Esse desafio será imposto a quem quer que seja eleito. Para ela, o desafio será mostrar tolerância com todas as opiniões, entendimento das questões que os apoiadores de Trump defendem e das frustrações que eles sentem, além de trabalhar para chegar ao outro lado do corredor e abrir uma ponte. Na frente legislativa, aproximar-se de Paul Ryan (presidente da Câmara) e encontrar caminhos comuns. Tentar mostrar que podem trabalhar juntos. O Congresso também tem altos índices de reprovação. Eu suspeito que, nos primeiros 100 dias, as vitórias serão pequenas, mas há desafios imediatos. A nomeação para a vaga na Suprema Corte será uma.

Kramer — Independentemente de quem seja, o vencedor terá um início de governo muito difícil. A realidade é que Trump teve algumas batalhas com Paul Ryan e outros, na Câmara. Trump fez promessas muito grandiosas sobre o que pretende alcançar, e a maioria delas não pode ser concluída só pelo presidente — demanda a cooperação do Congresso. Então, não será fácil. O Senado será muito dividido. Em alguns níveis, eu diria que Hillary teria melhores chances do que Trump para cumprir algumas coisas nos primeiros meses de mandato, pois ela teria os democratas da Câmara e alguns republicanos que demonstraram vontade de agir de forma pragmática. Será difícil para o próximo presidente. O primeiro referendo sobre o seu trabalho virá dois anos depois, nas eleições legislativas. Normalmente, o partido governante perde assentos no Congresso. E o destino está fora das mãos do presidente, por causa do que pode acontecer com a economia. Por isso, quem quer que seja eleito, terá dificuldades para se reeleger.

 

Correio braziliense, n. 19515, 30/10/2016. Mundo, p. 14