Valor econômico, v. 17, n. 4108, 10/10/2016. Política, p. A10

Para procurador, projeto sobre repatriação favorece dinheiro "sujo"

Por: Maíra Magro

 

O secretário de Cooperação Jurídica Internacional da Procuradoria-Geral da República (PGR), Vladimir Aras, apontou inconstitucionalidades nas mudanças que a Câmara pretende votar hoje na Lei de Repatriação. Em entrevista ao Valor, ele não quis adiantar se o Ministério Público irá questionar as eventuais alterações no Supremo Tribunal Federal (STF), mas disse que o procurador-geral da República, Rodrigo Janot, analisará a questão no momento oportuno. "Se essas alterações se implementarem, seguramente o procurador-geral vai analisar [essa possibilidade] quando o problema se instalar."

Ele lembrou que a PGR se manifestou contra a Lei de Repatriação desde o início, chegando a emitir nota técnica com esse posicionamento, aprovada por Janot.

Aras relatou ter notícias de que pessoas descobertas ou expostas em investigações como a Lava-Jato estariam correndo para aderir ao programa antes de serem pegas. Esse seria um dos motivos das pressões para ampliar o prazo de adesão (hoje fixado em 31 de outubro), pois a lei impede o ingresso de pessoas condenadas. Outra razão para a urgência é a entrada em vigor de tratados internacionais como o Fatca, que envolve a troca de informações financeiras com os Estados Unidos, e a Convenção da OCDE sobre Assistência Mútua Administrativa em Matéria Tributária, que abrange o compartilhamento de dados entre mais de 90 países. A convenção entrou em vigor para o Brasil este mês e passa a valer para a Suíça em janeiro de 2017. "Imagine a correria para que essas pessoas se livrem desse problema antes de a Suíça se integrar à convenção da OCDE."

Para Aras, a Lei de Repatriação "já não deveria existir", pois beneficia quem deixou de cumprir suas obrigações no tempo devido, oferecendo alíquotas mais vantajosas para quem aderir ao programa - o que ele classifica como quebra de isonomia. "Mas existindo, é melhor que fique como está."

O procurador considera "problemáticas" todas as ideias de mudança aventadas até agora pelos deputados, que, segundo ele, permitiriam a entrada de dinheiro "sujo" na economia. Ele atribui as sugestões a um "lobby para que as facilidades aumentem, não só de interessados em livrar o dinheiro ilícito que receberam, mas também de grupos profissionais que operam no mercado de blindagem patrimonial, que vão ganhar muito dinheiro com isso."

Uma das principais mudanças afrouxaria as obrigações tributárias exigidas pela lei atual. Segundo o relatório do deputado Alexandre Baldy (PTN-GO), que será levado a votação, o contribuinte que ingressar no programa terá que declarar apenas o saldo em 31 de dezembro de 2014, o que ficou conhecido como "foto", para obter a anistia de crimes como sonegação, evasão e a lavagem do dinheiro decorrente dessas condutas. Não será mais necessário declarar a movimentação financeira dos quatro anos anteriores, o chamado "filme", como queria a Receita Federal. "É injusto do ponto de vista do interesse público, porque o indivíduo que esgotou seus ativos e só deixou uns trocados na conta só vai pagar pelos trocados, e não por aquilo que consumiu ao longo dos quatro anos anteriores", diz Aras. Para ele, a mudança, se aceita, provocará uma falta de isonomia interna ao sistema, beneficiando quem gastou o dinheiro.

O procurador aponta ainda o tratamento desigual em relação àqueles que já aderiram ao programa pela lei atual, pagando imposto e multa de acordo com regras mais rígidas. "Quem já declarou e pagou pelo modelo anterior fica prejudicado em relação a quem só vai declarar o momento da foto."

Aras classificou como "vergonhosa" uma outra proposta, que abriria brecha para que contribuintes legalizassem dinheiro sujo. Nas últimas semanas, deputados cogitaram inserir um dispositivo na lei que tornaria opcional a exigência de declarar que o dinheiro ingressado no programa tem origem lícita.

"É absolutamente ilegítimo e vergonhoso que pensemos em admitir que dinheiro sem origem comprovada seja introduzido na economia brasileira e tributado com alíquota preferencial", afirma Aras. "Isso permitiria o ingresso de dinheiro de gente que praticou crimes graves como corrupção, narcotráfico e até sequestro, com a lei legitimando o dinheiro do resgate obtido pelo sequestrador, da cocaína vendida pelo traficante, do dinheiro desviado por um corrupto."

O procurador aponta, por outro lado, que quem não aderir à repatriação estará sujeito a ser pego pelo Ministério Público, sofrendo acusações por no mínimo dois crimes, sonegação e evasão de divisas. No caso da evasão, a PGR considera que o crime foi praticado a cada remessa de dinheiro e a cada 31 de dezembro em que for verificado saldo de recursos não declarados - o que pode resultar em múltiplas acusações e penas elevadas. Os contribuintes também poderão ser processados por lavagem de dinheiro e pelos chamados crimes antecedentes, que geraram o dinheiro que foi lavado.

Aras relata que o Ministério Público Federal acompanha tentativas de editar leis desse tipo desde o fim da década de 1990, quando o caso Banestado, desvendado em Curitiba assim como a Lava-Jato, identificou um grande fluxo de remessas para o exterior.

Ele lembra que a força-tarefa do Banestado, da qual fazia parte, foi procurada na época pelo deputado José Mentor (PT-SP) para debater a possibilidade de uma lei de repatriação, que não vingou. "Essas iniciativas sempre surgem nesses momentos em que há grandes casos de corrupção, evasão e lavagem de dinheiro movimentando a jurisdição criminal. Então, era esperado que esse projeto viesse agora novamente", afirma.

Ele atribui a nova movimentação ao surgimento de vazamentos como o Panama Papers, além de grandes investigações como a Zelotes e a Lava-Jato.

Na opinião de Aras, um programa de anistia deve estipular parâmetros muito claros para não beneficiar sonegadores que lavaram dinheiro de corrupção, narcotráfico e outros crimes graves. "Mas o benefício jamais poderia ser tão grande a ponto de tornar a posição de quem pagou na época desconfortável, a ponto de o indivíduo se sentir um idiota."

Ele conclui dizendo que as medidas em discussão no Congresso são um "ponto fora da curva" em relação ao caminho que o Brasil vem trilhando desde a Constituição de 1988, com um movimento ascendente em direção a transparência, cumprimento das leis e adequação de antigas práticas ilegais.