Pena de 8 anos não foi apenas por beijo roubado

 

20/10/2016
Rogerio Schietti Cruz

 

Na noite de terça-feira , a 6ª turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) acolheu recurso do Ministério Público do Mato Grosso (MP/MT) e decidiu condenar um jovem de 18 anos, a oito anos de prisão, em regime fechado, por estuprar uma garota de 15 anos. O Ministério Público havia recorrido para estabelecer sentença condenatória após o Tribunal de Justiça do Mato Grosso absolver o acusado,  alegando que a conduta não configurou estupro, mas ,sim,  um “beijo roubado”.

Em entrevista ao Correio, por e-mail, o ministro Rogerio Schietti Cruz disse que a sociedade brasileira ainda é herdeira de uma visão que, por vezes, inferioriza as mulheres em seus inúmeros papéis no âmbito da sociedade e da família. Consta no processo que o acusado agarrou a vítima pelas costas, imobilizou-a no chão, tirou a blusa da garota e forçou um beijo, enquanto mantinha o joelho pressionado sobre o abdômen da jovem. Foi reconhecido que ele não manteve relação sexual com a vítima porque alguém se aproximou em uma motocicleta.

Para o ministro-relator do caso no STJ, Rogerio Schietti Cruz, a decisão do Tribunal de Mato Grosso havia utilizado argumentação que reforça a cultura permissiva de invasão à liberdade sexual das mulheres. O relator relembrou que estupro é um ato de violência, não de sexo. E criticou a decisão anterior de absolver e de caracterizar o caso apenas como um beijo roubado, por desconsiderar o sofrimento da vítima e isentar o agressor de qualquer culpa pelos s atos.

O Tribunal do Mato Grosso entendeu que o caso não se enquadrava na definição de estupro, prevista no artigo 213 do Código Penal. A legislação deixa claro que estupro é o ato de constranger alguém, mediante violência ou grave ameça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso. No site do STJ, consta que o desembargador-relator do acórdão no Mato Grosso afirmou que o “o beijo foi rápido e roubado”, com “a duração de um relâmpago”, insuficiente para “propiciar ao agente a sensibilidade da conjunção carnal” e, por isso, não teria caracterizado  ato libidinoso.

 

Como este caso pode orientar as demais instâncias da Justiça em relação a casos semelhantes?

O Superior Tribunal de Justiça tem como uma de suas principais missões a de interpretar as leis e uniformizar sua aplicação no território nacional, de modo a permitir que, no julgamento de casos futuros semelhantes, tribunais e juízes de todo o Brasil possam decidir de acordo com essa compreensão. Não se tem como razoável e muito menos racional para o funcionamento da Justiça que uma mesma questão de direito seja interpretada de acordo com a opinião individual dos milhares de juízes do país, após a Corte constitucionalmente encarregada de dar a última palavra sobre o assunto já ter se pronunciado.

 

Qual o papel da Justiça ao julgar casos para que não se perpetue a cultura do estupro?

Nós, juízes, somos pessoas com formação cultural, social e familiar que, como qualquer outra categoria profissional, interfere em nosso modo de pensar e de agir. E, infelizmente, a sociedade brasileira ainda é herdeira de uma visão, não mais aceitável atualmente, que por vezes inferioriza as mulheres em seus inúmeros papéis no âmbito da sociedade e da família. O Código Penal se atualizou, passando a punir esses crimes como condutas que ofendem muito mais a dignidade sexual das pessoas (homens e mulheres) do que, como antes, crimes que simplesmente afetariam a moralidade pública. O que dizer então quando a violência sexual atinge crianças e adolescentes, hipótese em que o rigor há de ser maior? O Poder Judiciário, em sua grande maioria, já se adaptou a essa nova compreensão. Mas, infelizmente, alguns casos ainda mostram ranços de uma cultura de objetificação da mulher, que acaba tolerando comportamentos como o desse caso recentemente julgado.

 

Quais foram os elementos analisados para chegar à pena de oito anos em regime fechado?

A pena fixada pelo juiz que examinou o caso, em primeira instância, foi a mínima prevista em lei, considerando que a vítima era uma adolescente de 15 anos de idade.

 

Qual o posicionamento em relação às declarações do desembargador-relator sobre o caso? Quais outras condutas podem ser consideradas estupro?

Não há como deixar de reprovar essas considerações, que bem refletem a má compreensão sobre o que representa um ato de agressão sexual, eventualmente classificado, pela lei penal, como estupro. Hoje, a jurisprudência dos tribunais superiores (Supremo Tribunal Federal e STJ) é bem firme em considerar estupro qualquer ato de violência sexual em que o agente constrange a vítima (de qualquer sexo), mediante violência física ou grave ameaça, à prática de qualquer ato libidinoso. A dificuldade que percebemos em algumas decisões que examinamos no STJ é, exatamente, a de entender que ato libidinoso, para fins penais, não é apenas a prática de coito vaginal, oral ou anal com a vítima, mas todo e qualquer ato forçado, de cunho lascivo, mesmo que não ocorra a efetiva relação sexual.

 

Como atitudes iguais às suas podem contribuir para mudar visões machistas dentro do Judiciário?

Diria que a visão é apenas afinada com o pensamento que toda pessoa, independentemente de seu estrato social ou grau de escolaridade, deve nutrir em relação a esse assunto. Não há mais espaço, na sociedade atual, para pensamentos e ações sexistas, mais ainda quando interferem com a intimidade e a  liberdade sexual das pessoas.

 

Existe necessidade de modificar a cultura jurídica? Quais os caminhos a  seguir?

As mudanças sociais, culturais, ou de comportamento não ocorrem da noite para o dia. Demandam o amadurecimento das pessoas e das instituições. O que ontem era tolerado, hoje pode não ser, e o que hoje aceitamos como normal pode ser, aos olhos das futuras gerações, motivo de espanto, riso ou até de vergonha. O caminho é, como sempre, investir na educação, desde a infância até a formação universitária, e, no âmbito do Judiciário, manter a necessidade de aperfeiçoamento e de atualização dos conceitos e valores que vão se modificando no dinamismo dos novos tempos.

 

Correio braziliense, n. 19505, 20/10/2016. Política, p. 7