Valor econômico, v. 17, n. 4130, 11/11/2016. Brasil, p. A2

Sem transposição do rio São Francisco, Fortaleza pode ficar sem água em 2017

Por: Marina Falcão

 

Com mais de 3,5 milhões de habitantes, a região metropolitana de Fortaleza poderá enfrentar um colapso de abastecimento hídrico no ano que vem, algo que não acontece desde o fim dos anos 90. Se mais um período de chuvas fracas se repetir entre fevereiro e maio, confirmando o sexto ano consecutivo de seca no Nordeste, a capital cearense ficará dependendo exclusivamente da conclusão da transposição do São Francisco.

É uma corrida contra o relógio. O governo do Ceará teme que não haja tempo para aguardar por uma nova licitação a fim de substituir a empreiteira Mendes Júnior, que abandonou as obras no trecho que levará água a Jati (CE), na divisa com Pernambuco. A empreiteira, em recuperação judicial, não conseguiu concluir o trecho em agosto, como estava acordado, devido a problemas financeiros. Faltou concluir cerca de 10% do canal projetado.

A previsão atual do Ministério da Integração é de que o trecho norte, que inclui a parte da Mendes Júnior, só fique pronto no segundo semestre de 2017. Após consultar o Tribunal de Contas da União (TCU), o ministério optou pelo Regime Diferenciado de Contratação (RDC) para encontrar uma empresa substituta. Segundo o ministério, o RDC "reduz a possibilidade de contestação judicial do processo, dando maior celeridade a escolha do novo gestor".

Para o governador do Ceará, Camilo Santana (PT), o grau de urgência da situação justificaria uma dispensa de licitação e contratação de uma empreiteira que já estivesse em ação em outro trecho da obra, ou uma intervenção do Exército. A alternativa mais rápida que a licitação seria um leilão reverso, no qual o poder público apresenta o valor do projeto e as empresas vão fazendo ofertas menores. "A transposição é a minha maio preocupação hoje. Entre os Estados que a seca atinge, a situação mais crítica é a nossa", disse o governador. (ver a reportagem Retomada de obras opõe lideranças políticas do Estado)

Para Santana, contestações judiciais, comuns em licitações, poderão atrasar a retomada da obra. "Uma licitação a gente sabe quando começa, mas não quando termina", diz.

Ex-ministro da Integração e hoje secretário de Recursos Hídricos do Ceará, Francisco Teixeira, diz que é provável que haja uma grande "briga" entre as empresas interessadas no trecho Norte pelo momento de carência de obras de grande porte no país. Segundo ele, o cenário também é propício para contestações porque a transposição é uma obra para a qual não está faltando recursos. "Nunca faltou dinheiro para as obras da transposição, nem no governo da ex-presidente Dilma Rousseff nem no atual governo", disse.

Orçada inicialmente em R$ 4 bilhões, a transposição não deverá sair por menos de R$ 9,6 bilhões, de acordo com o governo federal. Já foram investidos R$ 8,4 bilhões, dos quais R$ 1,75 bilhão só em 2015. Este ano já soma gastos de R$ 1 bilhão.

Teixeira avalia que o atraso na conclusão das obras, prevista inicialmente para 2010, é natural devido a complexidade do projeto. " Não é uma obra para quatro anos, mas para pelo menos oito anos. Se o Exército começou os trabalhos só em 2007, é claro que a transposição não ficaria pronta em 2010."

A situação dos quatro reservatórios que abastecem a região de Fortaleza nunca foi tão crítica. Juntos, estão com menos de 15% da capacidade. Segundo Teixeira, o quadro só não é pior porque o sistema recebe água do reservatório de Castanhão desde o início da seca, em 2012. Mas agora o nível de Castanhão está abaixo de 7%, o que garante abastecimento só até março ou abril.

A última vez que a região enfrentou racionamento de água foi no fim dos anos 90, quando foi construído o Canal do Trabalhador para trazer água do rio Jaguaribe, no interior do Estado. No entanto, devido ao prolongamento da atual estiagem, a maior dos últimos cem anos no Nordeste, o rio Jaguaribe secou.

O governo do Estado tem apostado em iniciativas para reduzir o consumo de água nas cidades grandes, com aplicação de elevadas multas a consumidores que extrapolarem limites pré-estabelecidos e construção de poços e adutoras, mas ainda não foi adotado racionamento.

Segundo Teixeira, a economia com racionamento domiciliar "é pequena em relação ao sofrimento que causa à população", uma vez que o consumo de água humano é menos de 30% do total - o restante vai para a irrigação -, e o sistema de abastecimento do Ceará é interligado. Desde janeiro, a irrigação no Estado está com restrição de 75%.

Um total de 663 municípios no Nordeste e Norte do país tem reconhecimento federal de situação de emergência, o que na prática significa que esses locais dependem do abastecimento por carros-pipa. Só no Ceará, são 43 municípios nessa situação, segundo o Ministério da Integração. Em Pernambuco, que também aguarda a obra de transposição, são 69 cidades em emergência e, no Rio Grande do Norte, 153.

As obras de transposição, que já estão 90,5% finalizadas, beneficiarão 390 municípios no Nordeste ou 12 milhões de pessoas. Com 477 quilômetros de extensão, o canal é dividido em dois eixos: o leste e o norte. O leste, segundo o governo, ficará pronto até fevereiro de 2017, beneficiando Paraíba e Pernambuco.

Já o eixo norte, em virtude do processo de substituição da empresa Mendes Júnior, só estará pronto na segunda metade do próximo ano, se a licitação da nova empresa correr sem nenhum atraso. O eixo norte conduzirá a água do projeto até os Estados de Pernambuco, Ceará, Paraíba e Rio Grande do Norte.

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Retomada de obras opõe lideranças políticas do Estado

Por: Marina Falcão, Fabio Murakawa e Marli Olmos

 

O governador do Ceará, Camilo Santana (PT), passou a semana em Brasília tentando pressionar o governo a fazer uma contratação emergencial para parte das obras da transposição. Por ora, no entanto, a ideia não conta com o apoio do mais influente parlamentar do Estado no Planalto, o senador Eunício Oliveira (PMDB-CE), inimigo político do governador e dos irmãos Ciro e Cid Gomes, do PDT.

Na terça-feira, Santana se reuniu com o presidente Michel Temer e os senadores Eunício Oliveira e Tasso Jereissati (PSDB-CE) para discutir a retomada das obras da transposição. No dia seguinte, o governador se encontrou com o ministro da Integração, Hélder Barbalho, e representantes do Tribunal de Contas da União (TCU). O saldo dos encontros, até agora, foi apenas a montagem de um grupo de trabalho para estudar alternativas para a retomada das obras e garantia dos recursos para o trecho - entre R$ 170 e R$ 180 milhões.

Oliveira disse que não é contra uma dispensa de licitação, desde que essa seja a indicação dada pelo TCU. A decisão final é do ministro da Integração, Hélder Barbalho, indicado por Oliveira para o cargo.

"Não posso propor um administrador que cometa um deslize administrativo porque o governador não cumpriu o planejamento adequado e porque a contratação foi mal feita lá atrás [pelo então ministro da Integração, Ciro Gomes] e essa empresa quebrou", disse Oliveira.

O senador ressalta que Santana doou água do Castanhão, um dos reservatórios que abastece Fortaleza, para empresas que se instalaram na região do porto de Pecém.

O governador diz que entende a necessidade de o Ministério da Integração se resguardar juridicamente, mas destaca o grau de emergência da transposição para garantir o abastecimento da capital. Um eventual colapso em Fortaleza seria desgaste político para o grupo de Santana e dos Gomes. Ao mesmo tempo, beneficiaria possível candidatura de Oliveira ao governo do Estado. "A obra é federal. Não serei o responsável pela eventual falta de água", afirma Santana.

O PMDB do Ceará saiu derrotado das eleições municipais, onde o atual prefeito Roberto Cláudio (PDT), apoiado pelos Gomes, venceu em segundo turno Capitão Wagner (PR), apadrinhado de Oliveira e Jereissati. Em alguns momentos, durante a campanha, a oposição aproveitou o drama da seca para atacar os governos locais.

Na defesa do prefeito de Fortaleza, Ciro Gomes responsabilizou o governo federal pela situação por ter adiado para 2018 a conclusão das obras de transposição do São Francisco. Segundo ele, se não houver uma estação de chuvas minimamente regular o abastecimento de água em Fortaleza "entrará em colapso".