Poderes em crise

Júnia Gama, Eduardo Bresciani e Catarina Alencastro

26/10/2016

 

 

Uma série de declarações duras agravou, na terça-feira, a crise entre Poderes provocada pela prisão de agentes da Polícia Legislativa durante a Operação Métis, da Polícia Federal, na última sexta-feira. Logo pela manhã, a presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministra Cármen Lúcia, reagiu à declaração do presidente do Senado, Renan Calheiros (PMDB-AL), que chamara de “juizeco” o magistrado Vallisney de Oliveira, da 10ª Vara Federal de Brasília, responsável pela ordem de prisão dos policiais legislativos. Sem citar o presidente do Senado, ela afirmou ser “inadmissível” que um juiz seja “diminuído ou desmoralizado” fora dos autos.

— Todas as vezes que um juiz é agredido, eu e cada um de nós, juízes, é agredido. E não há menor necessidade de, em uma convivência democrática, livre e harmônica, haver qualquer tipo de questionamento que não seja nos estreitos limites da constitucionalidade e da legalidade. O Poder Judiciário forte é uma garantia para o cidadão — afirmou Cármen. — O Brasil é pródigo em leis que garantem que qualquer pessoa possa questionar, pelos meios recursais próprios, os atos. O que não é admissível é que, fora dos autos, qualquer juiz seja diminuído ou desmoralizado, porque, como eu disse, onde um juiz é destratado, eu também sou, qualquer um de nós, juízes, é.

Após se queixar a aliados, Renan respondeu às declarações da presidente do Supremo afirmando que faltou, da parte dela, uma advertência contra o juiz que emitiu a ordem de prisão:

— Eu concordo com a manifestação da ministra Cármen Lúcia. Ela fez, exatamente, como presidente do STF, como eu fiz ontem como presidente do Senado. Faltou uma reprimenda ao juiz de primeira instância, que usurpou a competência do Supremo Tribunal Federal. Porque, toda vez que alguém da primeira instância usurpa a competência do STF, quem paga a conta é o Legislativo. Sinceramente, respeitosamente, não dá para continuar assim.

À tarde, fracassou uma tentativa do Palácio do Planalto de pôr fim à crise: Cármen Lúcia recusou convite do presidente Michel Temer para um encontro nesta quarta-feira, no Palácio do Planalto, com Renan Calheiros e com o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ). Na sexta-feira, haverá nova possibilidade de um armistício, quando os chefes dos Poderes se encontrarem para outra reunião, esta para debater a Segurança Pública do país.

Irritado com o que considerou uma interferência indevida no Senado, Renan pediu a Temer que marcasse a reunião com os representantes dos três Poderes para dar o que chamou de “freio de arrumação” na relação. Mas, durante todo o dia, só aumentou o clima de tensão provocado pelas declarações dele, na véspera, contra a operação policial no Senado.

Cármen Lúcia falou logo na abertura da reunião do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), órgão que também comanda, com um discurso exigindo respeito dos outros Poderes.

— Numa democracia, o juiz é essencial, como são essenciais membros de todos os Poderes, que nós respeitamos, mas queremos, queremos não, exigimos, o mesmo igual respeito para que a gente tenha uma democracia fundada nos princípios constitucionais, nos valores que nortearam, não apenas a formulação, mas a prática desta Constituição — disse ela.

À tarde, Renan não se desculpou sequer por ter usado a expressão “juizeco”:

— Enquanto esse juiz ou qualquer juiz continuar a usurpar a competência do STF contra o Legislativo, eu sinceramente não posso chamá-lo no aumentativo.

O presidente do Senado ainda voltou a atacar o ministro da Justiça, Alexandre de Moraes, chamado por ele, na véspera, de “chefete de polícia”. Perguntado se o ministro participaria da reunião convocada por Temer com chefes de Poderes, Renan respondeu:

— Ele representa qual Poder? A Polícia Federal não me parece ser poder de Estado. Eu terei muita dificuldade de participar de qualquer encontro na presença do ministro da Justiça, que protagonizou um espetáculo contra o Legislativo.

 

MEDO DE PREJUÍZO EM VOTAÇÕES

Na terça-feira, Renan esteve novamente com Temer, que tenta acalmar os ânimos para evitar que turbulências no Senado afetem a votação da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que estabelece um limite para os gastos públicos, que deve chegar hoje à Casa. Foi a terceira reunião consecutiva que tiveram, depois da deflagração da Operação Métis, que prendeu o diretor e agentes da Polícia Legislativa. A reação de Renan nos dias que se seguiram à prisão dos policiais do Senado gerou preocupação no Palácio do Planalto, onde a postura de Renan foi vista como um sinal de que ele pode causar dificuldades no momento em que o governo depende do Congresso para aprovar o ajuste fiscal.

Em conversa reservada na noite de segunda-feira, Renan reiterou a reclamação sobre o ministro Alexandre de Moraes, por ter dito que os policiais do Senado “extrapolaram” suas funções ao realizar varreduras para detectar escutas nas casas de senadores.

O presidente do Senado tem dito a aliados que não pedirá a “cabeça” de nenhum ministro e que cabe ao presidente da República demitir ou nomear quem quiser, mas deixou clara sua insatisfação com a atuação de Moraes.

Na conversa, Renan disse a Temer acreditar que o problema é “muito mais amplo” que a fala que considerou desastrada do ministro. A aliados, o peemedebista afirmou que é preciso estabelecer de forma clara a separação dos Poderes e que, se continuar como está, até mesmo a governabilidade estaria ameaçada.

Para tentar driblar a crise, Temer escalou aliados que atuaram ontem em diversas frentes. O presidente do PMDB, senador Romero Jucá (RR), foi o emissário para tentar construir a paz com Alexandre de Moraes. Ele esteve à tarde no Ministério da Justiça. Já o ministro da Casa Civil, Eliseu Padilha, deu declarações minimizando a situação. Para Padilha, o episódio em breve será esquecido:

— Eu penso que o ministro Alexandre e o presidente Renan têm contribuído muito para o processo de desenvolvimento das ações entre o Executivo e o Legislativo e que esse episódio em pouco tempo será coisa do passado

Renan reiterou que vai dar entrada hoje no Supremo com uma ação que pede para definir os limites entre os Poderes. Auxiliares de Temer dizem que ele deve esperar para ver como o Supremo irá se manifestar sobre o pedido de Renan ao STF. O discurso para não entrar no tiroteio é de que não cabe ao presidente da República determinar que o ministro cumpra ou não uma decisão da Justiça.

Segundo interlocutores do presidente, apesar de Renan já ter externado seu incômodo com Moraes, as declarações feitas na segunda-feira e a continuidade da crise ontem surpreenderam pelo forte teor. Há uma dúvida sobre a real intenção do presidente do Senado, se ele pressiona pela demissão de Moraes para demonstrar poder junto ao governo, ou se está apenas criando um embaraço para ser recompensado mais à frente

No fim da tarde, sem saber que Cármen Lúcia tinha recusado o encontro desta quarta, Renan chegou a destacar a importância da reunião:

— Essa reunião convocada pelo presidente Michel Temer é muito importante. O Brasil já vive muitas crises, e não podemos deixar que essa crise se desdobre para uma crise maior, que é a crise institucional. Não vai haver crise institucional no Brasil.

 

 

O globo, n. 30396, 21/10/2016. País, p. 3.