Valor econômico, v. 17, n. 4129, 10/11/2016. Internacional, p. A11

Protecionismo de Trump ameaça gerar guerra comercial

Presidente eleito terá de adotar medidas para satisfazer protecionismo desejado por eleitores

Por: Assis Moreira

 

Um dos maiores riscos para o resto do mundo com a eleição de Donald Trump é os Estados Unidos, a maior economia do mundo, concretizar a ameaça do candidato em direção ao protecionismo, provocando retaliações de parceiros, concordam analistas.

Em sua campanha eleitoral, Trump prometeu retirar os EUA de alianças comerciais, renegociar o Nafta (Acordo de Comércio da América do Norte, com o Canadá e o México), destruir o ainda não ratificado acordo de Parceria Transpacífico (TPP), impor barreiras às importações procedentes da China e do México e apontar Pequim como manipulador da taxa cambial.

Porém, poucos esperam que ele chegue em janeiro à Casa Branca cumprindo a ameaça de impor imediatamente tarifas adicionais de 35% e 45% contra produtos originários do México e da China.

Tudo isso gera retaliação. A China, segunda economia do mundo, tem poder para machucar a economia dos EUA. Vários Estados americanos também têm amplos negócios com os mexicanos.

"Trump vai enfrentar forte pressão diplomática quando assumir e não se pode esperar guerra comercial a menos que ele queira realmente iniciar uma briga dura com a China e o México, seus alvos na campanha", avalia Simon Evenett, professor de comércio internacional na Universidade de Saint Gall, na Suíça.

A inquietação, em todo caso, é grande na cena comercial, porque a simples retórica isolacionista já causa danos aos negócios. Para se ter uma ideia do impacto de uma briga comercial entre os EUA e a China, basta ver estimativas do Fundo Monetário Internacional (FMI) feitas durante a campanha americana: um súbito aumento de protecionismo significaria, no mínimo, 0,2% de redução no crescimento nacional e queda de 2% nas importações e também nas exportações.

Com as barreiras se propagando, o choque potencial com a alta de alíquotas e de barreiras não tarifárias no comércio mundial implicaria num aumento de preços de importação de 10% em três anos. O crescimento global cairia 2%, investimentos diminuiriam e o comércio internacional continuaria a cair por cinco anos.

Por outro lado, a chegada de Trump no poder terá impacto duradouro nas já combalidas negociações para liberalização do comércio internacional.

"A OMC [Organização Mundial de Comércio] está paralisada, sem negociações importantes, e a eleição de Trump vai reforçar essa tendência negativa", avalia Evennet.

O Brasil reconhece a dificuldade. O subsecretário de assuntos econômicos e financeiros do Itamaraty, embaixador Carlos Márcio Cozendey, vê um "desafio" maior agora para os países alcançarem algum acordo sobre disciplinamento dos subsídios agrícolas no ano que vem na conferência ministerial da OMC a ser realizada em Buenos Aires.

"Mas é um desafio que aceitamos, porque é importante seguir avançando na OMC nas regras sobre o comércio agrícola internacional", declarou.

Para analistas da consultoria Capital Economics, o mais provável no caso da China é que Trump venha a rotular a segunda maior economia do mundo como um país manipulador da taxa cambial, sem impacto econômico imediato.

A maior surpresa desta eleição presidencial nos EUA foi o desempenho melhor que o esperado de Trump no chamado Cinturão da Ferrugem, Estados que formam o coração industrial dos EUA, como Pensilvânia, Michigan, Wisconsin e Ohio. Esses são Estados que normalmente votam em candidatos democratas.

Segundo pesquisas de boca de urna, Trump obteve um forte apoio do voto operário, sindicalizado, um tradicional bastião democrata. Para atrair esse eleitor, o discurso protecionista parece ter sido determinante. Assim, após a posse em janeiro, Trump terá de entregar parte do protecionismo que prometeu na campanha eleitoral. Essa será uma das principais ameaças à economia mundial nos próximos meses e anos.

Para o banco francês Natixis, a eleição de Trump na verdade é uma boa notícia para a China, por significar mais comércio e menos saída de capital. A economista-chefe do banco na Ásia, Alicia Herrera, considera que, com Trump na Casa Branca dificilmente o Congresso vai ratificar o acordo de Parceria Transatlântica de Comércio e Investimento (TTIP). E isso criará espaço adicional para a China assinar acordos bilaterais ou regionais com outras economias asiáticas e mesmo fora, como o México.

No geral, o protecionismo americano poderá levar a China a aumentar sua fatia de exportações nos emergentes, particularmente na Ásia, contrabalançando uma redução nas exportações para os EUA. Na prática, a concorrência vai aumentar nos mercados.

Segundo, durante a campanha eleitoral Trump não cessou de criticar o Federal Reserve (Fed, o banco central americano). Para Natixis, parece claro que ele vai pressionar por condições monetárias flexíveis por mais tempo e assim enfraquecer o dólar, para apoiar o crescimento econômico. Para a analista, isso é música para a China, que tem sofrido maciça saída de capital nos últimos dois anos.

Depois de ter alertado para uma "catástrofe" no comércio mundial, em caso de aumento de medidas protecionistas em países desenvolvidos, o diretor-geral da OMC, Roberto Azevêdo, escreveu no Twitter, destacando que a liderança dos EUA na economia global e no sistema multilateral de comércio permanecem vitais.

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Cético do clima, Trump não pode desafiar a economia

Por: Daniela Chiaretti

 

Donald Trump, um cético do clima, assumiu o governo dos Estados Unidos. O impacto da novidade ainda é indefinida, mas a eleição de Trump representa grande risco para o Acordo de Paris e todo o regime climático internacional. De imediato, abala as negociações de implementação do acordo em curso em Marrakesh, na CoP­22. Pode provocar grande estrago no já desajustado clima global que bate constantes recordes de anos cada vez mais quentes.
 
Trump disse durante a campanha que mudança do clima é um engano ("hoax", em suas republicanas palavras) e seguiu delirante ao afirmar que o acordo internacional era algo feito "por" e "para" os chineses. Prometeu cancelá­lo assim que assumisse o cargo.
 
Suas bravatas, se virarem realidade, serão climaticamente desastrosas. A campanha de Trump foi apoiada pelo lobby do carvão e do petróleo e ele prometeu facilitar novas explorações, assim como construir o controverso oleoduto Keystone, entre o Canadá e os EUA. É o desmonte da gestão Obama, que foi em direção contrária.
 
Segundo a revista "Scientific American", Trump já teria escolhido Myron Ebell, um conhecido cético do clima, para liderar a transição na agência ambiental americana, a EPA. Se isso ocorrer, a estratégia de Obama de relacionar mudança do clima a problemas de saúde e agir através de decisões da EPA, evitando passar pelo Congresso americano, cai por terra.
 
Foi assim que Obama conseguiu aprovar medidas para impulsionar as energias renováveis, limitar o avanço de termelétricas poluentes e controlar as emissões dos carros. A meta dos EUA de reduzir emissões de gases­estufa entre 26% a 28% em 2025 em relação a 2005 já estaria bem encaminhada.
 
A única boa notícia é que Trump é um enigma e pode não ser um obtuso completo aos humores do mercado. Fazer parte do Acordo do Clima é um bom negócio ­ ou a opção dos EUA será ficar para trás da China e da Alemanha na tecnologia das energias renováveis e da transição à economia do futuro? As questões, agora são duas: quanto sua presidência mudará o curso atual de descarbonização da economia americana e como a principal concorrente dos EUA, a China, irá se comportar. No acordo bilateral que Obama fechou com o presidente Xi Jinping em 2014, a China se comprometeu a aumentar a participação das renováveis em sua matriz em 20% em 2030. É um compromisso gigantesco. Seriam 1.000 gigawatts adicionais de energia nuclear, eólica e solar em 2030.
 
É mais do que todas as termelétricas a carvão que existem na China e próximo à capacidade total de geração elétrica dos EUA. O consumo do carvão vem caindo há três anos na China, que investe tão pesado em energias eólica e solar a ponto de derrubar o preço das renováveis no mundo. Diante disso, os EUA de Trump ficarão ancorados ao carvão, o sensacional combustível do século XIX?
 
Trump pode transformar tudo isso em um castelo de cartas e desmontar as ações de Obama com um sopro? Pode, claro. Mas a revolução econômica que o tratado prevê já está em curso, fora e dentro dos Estados Unidos. "Donald Trump está para se tornar uma das pessoas mais poderosas do mundo, mas mesmo ele não pode mudar as leis da física", disse, em Marrakesh, o veterano ambientalista americano Alden Meier. "Quando a água chega à sua porta, você se mexe. Não importa se você é republicano ou não", prosseguiu.
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Vitória de Trump nos EUA é mais um desafio à ordem mundial liberal

 

A vitória de Donald Trump representa um repúdio estrondoso ao status quo. A nação mais poderosa do mundo elegeu um magnata do setor imobiliário sem nenhuma experiência de governo, um pretenso homem forte, que desdenhou de aliados, do discurso público e das convenções democráticas. A não ser que mude facilmente de personalidade, a vitória de Trump representa, à primeira vista, uma ameaça ao modelo democrático ocidental.

Trump foi bem-sucedido onde Huey Long e George Wallace, populistas americanos do século XX, falharam. Ao tomar a Casa Branca, ele reescreveu o manual das campanhas presidenciais. Ele desafiou o establishment do Partido Republicano e derrotou todos os seus adversários, muitos deles com experiência pública. Finalmente, após uma campanha pródiga em injúrias e carente de políticas, ele conseguiu uma vitória retumbante contra Hillary Clinton, a candidata suprema do establishment.

Os americanos preferiram um político iniciante com um lema simples, “Vamos fazer a América grande novamente”, à ex-primeira-dama, ex-senadora por Nova York e ex-secretária de Estado. Os democratas ficarão tentados a atribuir a derrota à campanha sem alma de Hillary, com um golpe mortal desferido pela intervenção tardia do FBI na saga do uso por Hillary de uma conta privada de e-mail para tratar de assuntos de Estado.

Isso convenientemente ignora a mudança total promovida pelos republicanos na Câmara dos Deputados, no Senado e na Casa Branca — um fracasso não só para Hillary como também para o presidente Barack Obama, que colocou em jogo a sua reputação e o seu legado nos dias finais da campanha. As desculpas também ignoram as fraturas profundas existentes na sociedade americana, expostas pela crise financeira global.

A campanha de Trump apelou para o nacionalismo, o isolacionismo e o protecionismo. Ele insultou os imigrantes e prometeu erguer um muro enorme para mantê-los afastados, à custa do México. Ele castigou aliados na Europa e Ásia, repudiando décadas da doutrina de política externa ao insinuar que o Japão e a Coreia do Sul poderão virar potências nucleares para conter ameaças à segurança representadas pela China. Ele se aproximou de Vladimir Putin, quase chegando ao ponto de fazer apologia ao Kremlin. E ele prometeu desfazer acordos comerciais como o Nafta e a Parceria Transpacífico, para proteger e recuperar empregos americanos do setor industrial.

A retórica arrebatadora de Trump e o uso compulsivo do Twitter repercutiram entre milhões de americanos que se sentiam marginalizados pela globalização. Nos EUA, ainda segundo Trump, a globalização e o livre comércio vêm beneficiando apenas uns poucos privilegiados. Há um grão de verdade nas generalizações de Trump, às quais os líderes mais centristas deram pouca importância. A desigualdade vem aumentando, e a renda média estagnou ou caiu nos últimos anos, especialmente entre aqueles que têm formação universitária.

Há uma narrativa alternativa que enfatiza a resistência da economia dos EUA, sua capacidade de inovar e produzir empresas globais vencedoras, especial- mente no setor de tecnologia, conforme exemplifica o Vale do Silício. Mas Hillary Clinton, distante e sempre robótica, não conseguir conter isso com uma visão convincente de mudança.

Há também uma história precisa a se contar sobre a abertura dos Estados Unidos ao mundo. A ordem global de segurança é escorada nos compromissos claros dos EUA com os seus aliados. A Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) na Europa, o Tratado de Segurança EUA-Japão e o compromisso americano com a Coreia do Sul são apoiados pela lei e pelas tropas americanas estacionadas em várias partes do mundo. Colocar em dúvida esses compromissos, conforme Trump vem fazendo, ignora de forma temerária 70 anos de relativa paz e estabilidade em grandes parcelas do globo.

De modo parecido, a livre movimentação do capital, produtos, e mão-de-obra é uma das grandes conquistas do pós-guerra. A globalização tirou milhões de pessoas da pobreza, especialmente na Ásia. Os EUA são o principal suporte do sistema comercial multilateral desde o fim da Segunda Guerra Mundial. O TTP está morto. Se Trump, conforme ameaçou, virar as costas para a Organização Mundial do Comércio (OMC) e o Nafta, começando guerras de tarifas com parceiros globais, o mundo ficará mais pobre como um todo. Os efeitos da desigualdade não deverão ser aqueles que os apoiadores de classe média de Trump esperam.

Uma falha final da visão de mundo de Trump é a noção de que as mudanças por que os EUA passam são uniformemente ruins. Não: a mistura racial e as mudanças culturais por que passam o país, e o papel crescente das mulheres em sua condução, são fontes de grande vitalidade.

Quais são, então, as perspectivas para a Presidência Trump? A visão otimista é que o candidato malévolo e islamofóbico vai se transformar assim que estiver dentro da Casa Branca. Tal mudança é possível, mas poderá não ser sustentável. Seu temperamento poderá não permitir isso. Trump também pode afirmar, com justiça, que suas táticas, por mais ultrajantes que sejam, deram-lhe a Presidência. Ele teve uma chance de adotar um meio-termo mais responsável após a convenção republicana, mas preferiu não fazer isso.

Mesmo assim, Trump poderá pensar que a vitória lhe dá uma segunda chance. Ele precisa formar a sua equipe. Precisa trabalhar com o Congresso, especialmente com Paul Ryan, o presidente da Câmara dos Deputados, que ele vem ridicularizando regularmente. Trump se orgulha de entender “a arte dos negócios”. Ele precisa perceber que os negócios do governo não podem ser conduzidos por feudos pessoais. A política numa democracia é a arte da conciliação.

O mundo espera nervoso para ver se as políticas de Trump serão tão incendiárias quanto suas palavras. A mudança para um tom mais positivo desde o resultado das eleições é um primeiro passo. Mas este continua sendo um momento de grande perigo. A vitória de Trump, ocorrendo após a decisão do Reino Unido de deixar a União Europeia, parece ser mais um duro golpe para a ordem liberal internacional. Trump precisa decidir, por suas palavras e atos, se pretende contribuir para a grande retomada, pois o custo poderá ser incalculável para o Ocidente.