Valor econômico, v. 17, n. 4129, 10/11/2016. Internacional, p. A12

Por trás do triunfo de Trump, a perda do sonho americano

Parte da população americana se sente deixada para trás

Por: Juliano Basile

 

O fim do sonho americano e o descontentamento da classe trabalhadora branca com o sistema político do país estão entre as principais razões que explicam a vitória de Donald Trump nas eleições americanas. Para John Zogby, um dos maiores especialistas em pesquisas em Washington, a primeira razão para votar em Trump foi financeira. "É um sentimento de que 'estou perdendo terreno, de que meus ganhos salariais não estão subindo. Estou trabalhando num país que me paga menos do que eu recebia antes'", resumiu.

Segundo ele, essa percepção negativa vem crescendo na classe média desde o fim da década de 1980, com a mudança de um país com indústria manufatureira para um cada vez mais informatizada. Depois da crise financeira de 2008, esse sentimento se expandiu. "As pessoas começaram a sentir que não fazem mais parte da classe média", definiu. "E se eu não me sinto como alguém que participa da classe média, qual é o significado desse país? Por que estou levando meus filhos à escola? Que oportunidades eles terão? O que aconteceu com o sonho americano?"

A pesquisa de boca-de-urna realizada para um grupo de órgãos de mídia americanos corrobora essa percepção. Veja os resultados nos gráficos à direita.

Classe média, segundo ele, não é um conceito econômico. É um termo psicológico. "É como eu me sinto sobre mim mesmo, sobre meus filhos, minha família e meu futuro. É como um acordo que as pessoas fazem com o seu país. Elas trabalham duro, elas colocam comida na mesa, elas mandam os seus filhos para a escola e, com isso, eles poderão obter mais do que elas mesmas obtiveram", explica. "Mas há um sentimento geral dessas pessoas de que elas não estão melhorando e que os seus filhos não terão as mesmas oportunidades que elas tiveram."

Para Zogby, essa perda do sonho americano gerou raiva na classe trabalhadora e explica o apoio a Trump. "Essa raiva na classe média é algo muito americano. Ela significa que eu devo prover a comida à mesa e o sustento para os meus filhos e eles supostamente devem ter melhores condições do que eu e, assim, eu poderia me aposentar. Há a ideia de que esse acordo foi rompido e essas pessoas se perguntam: 'Quem está me ouvindo? Eu pago os meus impostos e quem está se importando comigo?'."

Outra percepção dessa classe é a mudança demográfica na sociedade. Zogby disse que essas pessoas que sentem uma perda de poder no país se perguntam o que aconteceu e observam as políticas para favorecer imigrantes, latinos e negros. "Elas se questionam: 'O que aconteceu com a minha América?'", resumiu. "Quando eu cresci, a América era branca. Eu sou um 'baby boomer' (nascido entre 1946 e 1964). A minha demografia é 81% branca. Os meus filhos estão com 30 anos e a demografia deles é 60% branca. Já os netos vivem numa demografia 48% branca. Esse é o caminho do futuro, mas alguns não conseguem compreender isso e sentem que estão perdendo terreno financeiramente."

Essa mudança demográfica seria, segundo ele, a segunda razão do voto a favor de Trump.

A terceira estaria no plano da visão dos americanos frente ao mundo. "Você sabe o boné de beisebol que diz: 'Torne a América grande novamente'?", perguntou. A palavra 'novamente' significa que, na Guerra Fria, o mundo era simples. Era nós contra o mal. E se decidíssemos combater o mal, nós venceríamos. Agora, há o sentimento de que perdemos a nossa virtude e nos tornamos fracos no mundo."

Zogby crê que, ao atender às pessoas que têm essa percepção de perda na América, Trump cativou mais eleitores, inclusive grupos racistas que não costumavam votar, como os "white supremacists" (supremacia branca), que ele alega desconhecer.

"E há também pessoas que não têm motivos para votar, a não ser porque odeiam os Clinton, os negros, ou mesmo uma mulher. Finalmente, para aqueles que não estão tão raivosos, Hillary Clinton representa o passado, o establishment e a corrupção."

Zogby faz previsões sobre as eleições presidenciais americanas há 32 anos e acertou todas desde a década de 1980, o que levou o jornal "The Washington Post" a qualificá-lo como "o ás das pesquisas". Anteontem, o especialista simplesmente se recusou a estimar quem ganharia. A razão: ele pressentiu que as pesquisas não seriam capazes de captar esse sentimento.

O voto envergonhado foi um fator na virada a favor de Trump. Nesse caso, pessoas se recusaram a declarar seu voto em Trump aos pesquisadores, pois sentiam que, se o fizerem, a resposta não seria bem recebida. Esse voto é imperceptível às pesquisas.

Praticamente todas as pesquisas indicavam ligeira vantagem para Hillary num cinturão de Estados que vai da região Centro-Norte ao Nordeste do país e que era fundamental para resultado final. São Estados predominantemente democratas. Eles vão de Wisconsin até a Pensilvânia.

Há muitos trabalhadores de classe média que sofreram com perdas salariais nessa região. Eles são de maioria branca. Várias indústrias faliram ou passaram a empregar bem menos nas periferias desses Estados com a evolução da tecnologia e da informatização. Wisconsin e Pensilvânia foram justamente os dois Estados que deram a vitória final para Trump.

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Maioria no Congresso favorece agenda controversa

Por: Sergio Lamucci

 

Com a Câmara dos Deputados e o Senado nas mãos do Partido Republicano, Donald Trump terá mais facilidade para fazer avançar a sua controversa agenda a partir do ano que vem, embora não deverá obter carta branca para todas as suas propostas. Trump tende a conseguir autorização para aumentar gastos em infraestrutura e a aprovação rápida pelos senadores de um juiz conservador para a Suprema Corte. Os congressistas também devem concordar com reduções de impostos, mas talvez não na magnitude desejada pelo futuro presidente.

A manutenção do Senado sob controle republicano surpreendeu vários analistas, que esperavam que os democratas recuperassem mais cadeiras na casa e obtivessem uma pequena maioria, como diz Kent Hughes, pesquisador do centro de estudos Wilson Center. Para Hughes, o Congresso deve permitir a elevação de despesas em infraestrutura, uma das propostas apresentadas por Trump na campanha. O novo mandatário também deve conseguir autorização para aumentar gastos de defesa.

Com maioria nas duas casas do Congresso, Trump deve dar prioridade às suas iniciativas de reforma tributária, diz, em nota, Lindsay Newman, analista da consultoria IHS Country Risk. Entre as propos- tas, há a ideia de reduzir de sete para três as alíquotas do imposto de renda para a pessoa física, além de cortar as taxas para empresas de 35% para 15%, segundo Newman.

Hughes, porém, acredita que Trump não conseguirá toda a redução de impostos que deseja. Com a perspectiva de aumento de gastos como os de infraestrutura, cortes de tributos expressivos podem elevar muito déficit público, lembra ele. Embora os republicanos costumem defender queda de impostos, é possível que parte da legenda relute em aprovar medidas que provoquem um tombo na arrecadação. Mesmo antes da ascensão de Trump, a sigla já se encontrava dividida, com as disputas entre a liderança tradicional e os membros do movimento ultraconservador Tea Party. “Trump deve obter alguma redução de tributos, mas não toda”, resume ele.

A manutenção do controle do Senado com os republicanos na presidência de um político do partido deve ter consequências importantes — e duradouras — para os EUA. Como lembra o economista-chefe para os EUA do HSBC, Kevin Logan, cabe aos senadores confirmar os indicados pelo presidente para a Suprema Corte, para os cargos de juízes federais, para o gabinete de secretários e para o Federal Reserve (Fed, o banco central dos EUA). “O presidente Trump deverá ser capaz de moldar a ideologia do judiciário federal por vários anos”, escreve Logan em relatório.

Hoje, uma das nove cadeiras da Suprema Corte está vaga, desde a morte do conservador Antonin Scalia. Obama indicou o centrista Merrick Garland para o posto, mas os republicanos obstruem o processo há meses. Com a vitória de Trump, a indicação de Garland não deverá ser apreciada. O futuro presidente então indicará um nome mais conservador para o cargo, que deve ser confirmado sem maiores problemas pela maioria republicana. Hoje, como há três juízes com cerca de 80 anos no tribunal, existe a possibilidade de que eles se aposentem durante o mandato de Trump. Se isso ocorrer, os republicanos terão a chance de mudar muito o perfil da corte.