Contra os 'dribles' no tento

 
24/10/2016
Renata Mariz

 

Ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) criticaram a prática de pagamentos acima do teto constitucional que beneficiam três a cada quatro juízes brasileiros, conforme mostrou reportagem do GLOBO deste domingo. Vencimentos maiores que o recebido pelos integrantes do STF (R$ 33.763), valor estabelecido como limite no funcionalismo pela Constituição, só são possíveis graças a “dribles”, afirmou o ministro Marco Aurélio Mello.

Segundo ele, a regra constitucional é “esvaziada” pelos penduricalhos — como vantagens e indenizações — criados como forma de inflar os subsídios dos magistrados:

— Quando se criou o subsídio foi para não se ter outras parcelas. Subsídio é parcela única, não deveria haver essa distorção. Muito menos rotulando certas parcelas como indenizatórias para fugir do teto. Até porque, pela regularidade e natureza, vemos que essas parcelas são remuneratórias.

O ministro Gilmar Mendes defendeu que o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), presidido pela ministra Cármen Lúcia, aja para proibir os pagamentos acima do teto no Judiciário, classificando-os de “loucura”.

— Por resoluções que editou ou pela falta de fiscalização, o CNJ permitiu que se criasse o caos e agora precisa agir para voltarmos à normalidade — disse Gilmar Mendes.

 

AÇÕES PARA COIBIR PARADAS NO STF

Diante dos dados graves levantados na reportagem, que apontou 89,18% dos magistrados no âmbito federal e 76,48% nos tribunais estaduais ganhando acima do limite, Gilmar disse que só “o Supremo observa o teto”. Ele citou algumas iniciativas que poderiam cessar as distorções, mas que hoje estão paradas no STF.

Uma delas é a ação direta de inconstitucionalidade ajuizada em 2010 pela Procuradoria-Geral da República, no STF, questionando a lei estadual do Rio 5.535/2009, que criou uma série de pagamentos aos magistrados fluminenses não previstos na Lei Orgânica da Magistratura Nacional (Loman).

Em seu voto, o então relator Carlos Ayres Britto, hoje aposentado, acolheu parcialmente os argumentos da PGR, considerando incompatíveis com a Loman vantagens como “auxílio-saúde, auxílio pré-escolar, auxílio-alimentação, diferença de entrância, adicional de permanência, gratificação pelo exercício como Juiz Dirigente de Núcleo Regional, entre outras”. O julgamento foi paralisado por um pedido de vista do ministro Luiz Fux, em 2012.

Para Gilmar, é preciso agilizar o julgamento dessa e de outras ações que tratam dos vencimentos no funcionalismo público fora das regras constitucionais, sobretudo diante da situação das contas estaduais e municipais:

— O Estado do Rio, à beira de um colapso financeiro, deliberadamente ultrapassa o teto. Essa lei que está (sendo questionada) no Supremo criou uma série de ganhos, como auxílio-creche, auxílio-moradia, auxílio-livro.

O ministro disse que propôs uma súmula para dizer que as vantagens não previstas na Loman não são válidas, mas também não andou.

O ministro Luís Roberto Barroso também demonstrou preocupação com os números apresentados pelo GLOBO, refutando a justificativa oficial para os pagamentos, de que se referem a vantagens, indenizações ou gratificações livres do chamado abate-teto:

— O conceito de subsídio tem por propósito precisamente que não existam penduricalhos. Portanto, acho que os juízes devem ser bem remunerados, porque isso é uma garantia, mas com absoluta transparência. A sociedade precisa saber quanto paga aos juízes.

Apesar da crise econômica, foram intensas nos últimos meses as negociações para reajustar o salário dos ministros do STF. O projeto está parado no Congresso, mas vinha atraindo a atenção e o interesse de muita gente, e não apenas dos 11 integrantes da Corte. Como nenhum servidor público pode formalmente ganhar mais que um ministro do STF, um aumento poderia levar a um efeito cascata, ao permitir que outras categorias — a começar pelos juízes, desembargadores e ministros de outros tribunais superiores — também peçam reajuste.

Os demais magistrados brasileiros têm seus salários-base limitados a um percentual dos rendimentos dos integrantes do Supremo. No caso dos desembargadores, por exemplo, o salário é igual a 90,25% de um ministro do STF. Assim, aumentar o salário de um significa elevar na mesma proporção os rendimentos do outro.

O último reajuste no salário dos ministros do STF ocorreu em janeiro de 2015, quando passou de R$ 29.462,25 para R$ 33.763. O objetivo era elevá-lo agora para R$ 39.293. A proposta contava com o apoio do governo e do PMDB, mas desagradou a parte da base que apoia o presidente Michel Temer, em especial PSDB e DEM. A repercussão negativa do aumento em meio à crise surtiu efeito. Temer, ao GLOBO, declarou que o aumento dos salários dos ministros do STF geraria “cascata gravíssima”.

Um dos principais negociadores do aumento foi Ricardo Lewandowski, que presidiu o STF até o começo de setembro, quando deu lugar a Cármen Lúcia. A mudança no comando interrompeu as pretensões de reajuste. Cármen assumiu admitindo não ser o momento de conceder os reajustes.

Ao GLOBO, o presidente da Associação dos Magistrados Brasileiros, João Ricardo Costa, disse que “as recorrentes tentativas de enfraquecer o Judiciário, por ação de setores que pretendem atingir sua autonomia funcional e criminalizar suas atividades, colocando em xeque as questões remuneratórias dos juízes (...), não podem ser pretexto para atacar as prerrogativas dos magistrados”.

 

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Decisões do próprio Judiciário embasam remunerações

 

24/10/2016
André de Souza
Eduardo Bresciani

 

 A Constituição diz que ninguém na administração pública pode ganhar mais que um ministro do Supremo Tribunal Federal (STF). Ironicamente, partiram da própria corte decisões que deram aval para que magistrados de instâncias inferiores ganhassem mais do que os ministros do STF. Resoluções de órgãos responsáveis por controlar o Judiciário também ajudaram a abrir a porteira para uma série de vantagens e gratificações que inflam os vencimentos dos magistrados. Resultado: hoje, a maioria recebe mais do que os R$ 33.763 pagos a um ministro do STF. E tudo isso com respaldo legal.

Em 2010, a Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) entrou com uma ação no STF pedindo que fosse reconhecido o direito a auxílio-moradia, previsto na Lei Orgânica da Magistratura Nacional (Loman), em localidades onde não há residência oficial à disposição do magistrado. Na época, o então ministro Joaquim Barbosa, relator do caso, negou a liminar pedida pela Ajufe. “É fato notório que os magistrados federais são atualmente remunerados por meio de subsídio, que, por natureza, indica o englobamento em valor único de parcelas anteriormente pagas em separado”, escreveu Barbosa.

Em abril de 2013, um grupo de juízes federais entrou com nova ação para garantir o benefício, tendo depois recebido o apoio da Ajufe. Em 15 de setembro de 2014, o ministro Luiz Fux, do STF, concedeu liminar. Ele argumentou que o benefício já era pago a juízes de 18 estados e a membros do Ministério Público, carreiras equivalentes. Também citou a Loman e lembrou que o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) concede o auxílio a conselheiros e magistrados do órgão.

“Em razão da simetria entre as carreiras da magistratura e do Ministério Público, que são estruturadas com um eminente caráter nacional, defiro a tutela antecipada requerida, a fim de que todos os juízes federais brasileiros tenham o direito de receber a parcela de caráter indenizatório”, escreveu Fux. Em parecer entregue ao STF, o procurador-geral da República, Rodrigo Janot, cargo máximo do Ministério Público Federal (MPF), concordou com o pedido dos juízes federais.

 

AUXÍLIO DUPLICIDADE EM NEGADO

Após a decisão, a Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra) e a Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) entraram com ações parecidas para garantir a extensão do benefício a todos os magistrados do país. As ações foram distribuídas novamente a Fux, que, em 25 de setembro de 2014, acolheu os pedidos.

A ação da AMB beneficiou juízes e desembargadores de Acre, Amazonas, Bahia, Ceará, Espírito Santo, Paraíba, Piauí, Rio Grande do Sul e São Paulo, estados que ainda não reconheciam o direito ao auxílio, além dos magistrados da Justiça Militar. A da Anamatra alcançou os juízes trabalhistas.

Em outubro de 2014, a Advocacia-Geral da União (AGU) entrou com recursos e novas ações para derrubar as decisões de Fux. Alguns foram negados e outros ainda serão analisados. Numa dessas ações, a AGU diz que não havia previsão legal regulamentando a vantagem e que a nova despesa, não prevista no orçamento, atingiria cifras milionárias.

O máximo que a AGU conseguiu no STF foi suspender o pagamento de auxílio-moradia em duplicidade: em 20 de novembro de 2015, o ministro Ricardo Lewandowski atendeu a pedido da AGU e suspendeu decisão do Tribunal Regional Federal da 2ª Região (TRF2) que garantia o pagamento a juízes do trabalho casados com quem também recebia o benefício. Poucos dias depois, em 2 de dezembro, analisando ação relacionada a magistrados de Santa Catarina, Lewandowski voltou a suspender decisão autorizando o pagamento em duplicidade.

Além das decisões do STF, uma resolução do CNJ, de 2006, permitiu que algumas verbas, entre elas o auxílio-moradia e o auxílio pré-escolar, não levassem em conta o teto constitucional. Em outubro de 2014, outra resolução do CNJ estabeleceu que a ajuda era “devida a todos os membros da magistratura nacional”. Na mesma época, o Conselho da Justiça Federal (CJF) editou resolução de mesmo teor.

No próprio Judiciário, há decisões liberando pagamentos retroativos, que também aumentam os rendimentos de magistrados. Juízes e desembargadores do Tribunal de Justiça (TJ) de Rondônia foram beneficiados por um acordo homologado em dezembro de 2014 por Fux. Em um processo iniciado em 1990, um grupo de juízes pediu o pagamento de auxílio-moradia e transporte relativo a um período de dois anos no qual não houve repasses. Em 1995, outro processo foi ajuizado. Em 2014, os magistrados e o estado de Rondônia chegaram a um acordo. As verbas do auxílio-moradia passaram a ser pagas, e os juízes desistiram da verba de transporte.

 

TJ DO RIO DIZ QUE NÃO PAGA MAIS

No Rio, 99% dos magistrados recebem mais do que os ministros do Supremo. Segundo o TJ local, o teto remuneratório do Poder Judiciário do estado é o estabelecido pela Constituição e pelo CNJ, o que faz o subsídio de desembargador corresponder a 90,25% da remuneração dos ministros do STF. Ainda segundo o tribunal, os valores recebidos supostamente além do teto do STF correspondem a débitos atrasados, obedecendo a decisões de STF e STJ e a leis federais e estaduais; e a verbas indenizatórias, não submetidas a esse limite, como férias, indenização por férias não gozadas, 13º, abono de permanência e aulas ministradas.

 

O globo, n. 30394, 24/10/2016. País, p. 3