Valor econômico, v. 17, n. 4125, 04/11/2016. Finanças, p. C1

Presidente da CVM quer começar julgamento do caso Petrobras até julho

Autarquia nunca teve que lidar com o tema da corrupção antes, diz Pereira

Por: Graziella Valenti

 

Leonardo Pereira, presidente da Comissão de Valores Mobiliários (CVM), quer julgar ao menos um processo da Petrobras relacionado à Operação Lava-Jato, do Ministério Público Federal (MPF), antes de encerrar o mandato, em julho de 2017. Gostaria de começar ainda em 2016, ano de comemoração de 40 anos da Lei das Sociedades por Ações e da própria CVM. Deseja, com isso, pessoalmente começar a construir a jurisprudência para casos de corrupção, especialmente em empresas de economia mista. Boa parte dos processos da estatal trata dos deveres de lealdade e diligência dos administradores. A corrupção propriamente não é tema para a CVM.

Há no mercado grande expectativa em relação à atuação da xerife no caso. Muitos a avaliam como morosa, principalmente, quando comparada à Justiça de primeira instância que já condenou diversos envolvidos na Lava-Jato.

"O Brasil atual traz muitas novas questões ao mesmo tempo. A CVM nunca teve que lidar com o tema da corrupção antes e, menos ainda, nesta proporção", justificou Pereira, em entrevista exclusiva ao Valor.

A dimensão assumida pelas investigações da Lava-Jato fez com que a União se tornasse o principal cliente da CVM. Além de investigações, inquéritos e processos relacionados à Petrobras, há os procedimentos ligados às denúncias de corrupção dentro da Eletrobras - sobre os quais Pereira sequer fala da existência. E, como a CVM é uma autarquia vinculada administrativamente ao Ministério da Fazenda, há uma curiosidade adicional do mercado nestes casos: é como se ela fosse julgar seu próprio controlador.

Só de Petrobras, há quatro processos sancionadores - quando já foi feita a acusação pela CVM. Entre eles, um inédito: a União é acusada de falhar com o dever de controladora previsto na Lei das S.As.

Há ainda seis inquéritos em andamento que, caso se transformem em processos sancionadores, têm potencial para levar a ex-presidente Dilma Rousseff ao banco dos réus da CVM, por seus atos quando era presidente do conselho da estatal. O conteúdo dessas investigações é sigiloso.

Por fim, existem dez processos administrativos (análises que, se não forem encerradas, evoluirão para inquérito ou processos sancionadores) sobre os balanços da estatal de 2015 e de anos anteriores, e sobre a atuação de seus auditores independentes, KPMG e PricewaterhouseCoopers (PwC).

Os processos do "Brasil atual" já seriam um grande volume extra à rotina de trabalho da equipe CVM, mas o projeto de gestão de Pereira adicionou um desafio: fazer uma limpeza no passado da autarquia. Essa foi uma decisão tomada no início de 2013, antes da Lava-Jato, dentro do Planejamento Estratégico que Pereira traçou junto com todo o corpo técnico da casa, para os próximos dez anos da autarquia.

Na reta final de sua gestão, ele considera que promoveu uma revolução silenciosa ao buscar celeridade nos processo sancionadores, após uma faxina nas prateleiras. "Não há mais nada em estoque, parado, anterior a 2014. E, se Deus quiser, quando eu estiver de saída, não haverá nada anterior a 2015."

Ao Valor, contou que, tão logo chegou, percebeu que estava num órgão com função de Estado, mas com características do setor privado: "Aqui se tira leite de pedra". Assim, já faz coro com todos aqueles que passaram pela diretoria do órgão. Mesmo na hora de criticar, há cuidado adicional, como se a sobrevivência ali fosse um pequeno milagre. "Nenhum outro regulador de mercado no mundo tem agenda tão extensa como a da CVM e ainda com a função de polícia", enfatizou um ex-diretor.

A média de processos julgados entre 2013 e 2015 passa de 50 por ano - mais do que em todo passado recente da casa. E, para este ano, a meta é alcançar 76. Além disso, foram criados e estabelecidos prazos para o andamento dos casos dentro das superintendências. "Mexer no processo sancionador não agrada a ninguém, não gera popularidade", ponderou.

Segundo Pereira, a questão dos estoques prejudica a eficiência do papel de polícia da CVM. "A demora gera um debate muito delicado sobre prescrição. Além disso, muitas vezes, quando a pena chega, já não produz mensagem ao mercado. Então, não pode!"

Para ele, os reflexos disso ainda não foram percebidos. "Ninguém sente ainda. E acho até que o momento político nem permite."

Como consequência imprevisível da faxina, a espera por reparações ligadas à Petrobras tornou-se ainda mais aguda. Enquanto a autarquia julgava coisas com mais de uma década, as investigações feitas a partir do Paraná causavam grande frisson e dominavam as manchetes do noticiário nacional.

Por isso, Pereira arrisca dizer que a percepção inicial pode ser até ruim. "Quando cheguei, havia casos de 1999 na prateleira. Julgar coisas de 2000 em 2016 te deixa sem graça. Quando está na estante, não se vê. Mas precisava ser feito."

Essa limpeza produziu outro efeito: aumento na quantidade de termos de compromissos recusados. Nos últimos dois anos, foram analisados cerca de 120 pedidos e mais de 60% deles foram negados. O saldo agrada investidores, mas desagrada grandes bancas de advogados. Para esses, falta diálogo. Sem uma conversa anterior, alegam, há mais risco de frustrar o regulador com a proposta.

A mesma razão que levou Pereira a escolher arrumar a casa explica o esforço por uma Medida Provisória (MP) que amplie o teto das penas que pode aplicar e corrija a defasagem gerada pelo tempo e pelo próprio crescimento do mercado. O teto atual para multa é R$ 500 mil e, com a medida, passaria a R$ 500 milhões. "Uma agenda com potencial para desagradar muita gente", admite Pereira.

Segundo contou ao Valor, a MP voltou a caminhar na Casa Civil, mas é possível que seja dividida.

Quando o escândalo da Petrobras começou a tomar corpo, no fim de 2014, a CVM decidiu dar atenção ao debate sobre informação privilegiada e foi formado um Grupo de Trabalho que propôs 25 ações para serem implantadas até o fim de 2017 para melhorar a identificação de indícios da prática. O foco escolhido foi o desdobramento do planejamento estratégico, segundo Pereira. Para ele, "insider é um dos maiores males". "No Brasil, é praxe o relações com investidores falar para o analista; o conselheiro, para o amigo. Eu via isso todo dia na minha vida de executivo. E, muitas vezes, as pessoas falam sem clareza de que podem estar praticando insider."

A ansiedade dos espectadores com a Lava-Jato ajuda a entender o que a CVM chama de agenda da transparência: passou a tornar público inquéritos de grandes casos. A lista de trabalhos sobre Petrobras é aberta por iniciativa do regulador, na tentativa de saciar parte do interesse público, enquanto os processos correm com os prazos estabelecidos por Pereira.

A depender do resultado dos julgamentos, Petrobras e Lava-Jato ainda têm chance - mesmo com toda repercussão midiática - de não serem o calcanhar de aquiles da atual gestão.

Todos os presidentes tiveram um ponto fraco. Na administração de Pereira, por enquanto, é a fusão entre Oi e Portugal Telecom. A lembrança da transação, sempre citada, vem acompanhada de críticas.

O caso voltou aos holofotes com o pedido de recuperação judicial da tele, com débitos de R$ 65,4 bilhões - metade de emissões herdadas da tele portuguesa.

Desde 2014, por conta de Oi, a receptividade às decisões do colegiado está bastante baixa. A disposição ficou ainda menor com recentes indicações à diretoria da casa, que não tomaram como base experiência em mercado e nem levaram em conta os nomes sugeridos por Pereira - tema que ele não comenta. A crítica do mercado é que falta vivência no colegiado.

Em setembro, a Associação de Investidores no Mercado de Capitais (Amec) encaminhou carta ao ministro da Fazenda, Henrique Meirelles, para pedir que as próximas indicações para o colegiado recaiam sobre profissionais familiarizados com os desafios dos acionistas minoritários. A alegação é que a qualificação técnica não é o suficiente. É necessário também ao órgão estar conectado com a realidade do mercado de capitais. Além de uma "grande sensibilidade sobre as lacunas legais e oportunidades de expropriação".

Para os críticos, a falta de experiência prática dos diretores levou a CVM a não dar atenção necessária aos precedentes criados com algumas decisões ou aos efeitos nocivos sobre jurisprudências construídas. Como os antecessores, Pereira evita o debate público sobre decisões tomadas pelo colegiado.

No caso da Oi, a CVM negou em 2014 o pedido dos minoritários da tele para que tanto os ex-controladores brasileiros, Andrade Gutierrez e Grupo La Fonte (Família Jereissati), como a Portugal Telecom não votassem na assembleia sobre a fusão. Os acionistas de mercado alegavam que os controladores se beneficiavam da transação ao transferirem à tele a dívida que detinham. Sem o voto dos donos, era grande o risco de a fusão não sair.

A autarquia permitiu o voto e colhe críticas severas por isso até hoje. A alegação é que a decisão destruiu avanços jurídicos construídos ao longo de uma década sobre conflito de interesses e benefício particular.

Agora, o caso Oi se tornou alvo de dois inquéritos, que investigam a avaliação da Portugal Telecom para a fusão. Decorrem da fraude que levou à perda de quase € 1 bilhão do caixa da companhia. Em uma das investigações, a autarquia verifica a responsabilidade dos administradores e, na outra, dos intermediários da oferta de ações que captou R$ 8,2 bilhões na bolsa como parte da reestruturação.

Mais recentemente, duas outras decisões do colegiado - sobre Saraiva e BR Distribuidora - provocaram comentários negativos, de novo, sobre a falta de conhecimento do colegiado da CVM.

Em Saraiva, preocupou o entendimento de alguns membros do grupo sobre conselheiros de minoritários eleitos com votação em separado poderem ser destituídos com voto do controlador. A visão não foi vitoriosa, mas nem por isso passou incólume às críticas.

Já em BR Distribuidora, o colegiado definiu que o direito de preferência de minoritários da controladora em casos de venda de subsidiárias integrais vale só para subsidiárias fruto de operações de incorporações de ações. A restrição não está escrita no artigo 253 e a CVM foi acusada de tentar reescrever a lei.

Há tempos não se via preocupação tão significativa com a importância que o governo atribui ao regulador como parâmetro sobre o respeito ao mercado de capitais.

A CVM é uma autarquia com superávit, da ordem de 25%. Mas o orçamento nunca esteve tão pressionado. Considerando taxas e arrecadações com multas e termos de compromisso, a receita passou de R$ 252 milhões para R$ 324 milhões, entre 2012 e 2015.

As despesas discrionárias, aquelas com potencial de melhorar os serviços prestados, pois são as adicionais aos encargos com pessoal, estão no piso, partindo de 2010. A previsão na dotação do orçamento para 2016 ficou em R$ 30 milhões e foi contingenciada para R$ 22 milhões - ambos valores metade dos registrados em 2013 e 2014.

Pereira começou a gestão na CVM no fim de 2012 com Guido Mantega à frente do Ministério da Fazenda. Passaram pela pasta, desde então, Joaquim Levy, Nelson Barbosa e, agora, Henrique Meirelles. Quando assumiu, o tema mais picante eram os casos relacionados ao empresário Eike Batista e aos fracassos do Grupo X.

A opinião de Pereira é que tanto o Grupo X como a Petrobras expõem a falta de "governança viva" nas empresas e as consequências de administrações que querem fazer "só check list de governança". "A Lava-Jato mostrou a fraqueza na maneira como companhias se relacionam com o poder público. É um problema cultural do Brasil e também da estrutura política, de coligações e planos de poder."

O bom funcionamento das estruturas de governança e controles internos, segundo ele, é de responsabilidade do conselho de administração: "Os conselhos precisam ser mais fortes e os conselheiros, mais informados e atentos".

O mandato de Pereira ainda está em vigor, mas algumas marcas de sua personalidade já podem ser apontadas sobre a gestão. Com carreira de executivo em empresas privadas, foi habituado a não dar opinião pessoal e não falar sobre expectativas. Prefere falar de resultados e ouvir. O tipo calado contrasta com o perfil que predominou na autarquia e pesa para sensação do mercado de que a CVM estaria mais tímida.