O globo, n. 30460, 29/12/2016. Opinião, p. 15

Liberdade e pesquisa

Estudo do ritual da ayahuasca enriqueceu e ajudou a refinar debate

 

Lucas Kastrup Rehen e Stevens Kastrup Rehen,

O Brasil é responsável pelo surgimento de diversas práticas religiosas. As religiões ayahuasqueiras (Santo Daime, Barquinha, UDV) são assim denominadas por fazerem uso ritual de uma bebida que combina principalmente um cipó e folhas de um arbusto originais da Floresta Amazônica.

A ayahuasca é usada por mais de 70 povos indígenas. Sua origem remonta aos povos amazônicos, sendo comumente descrita como a “medicina da floresta”. Propiciadora de visões, tem efeitos psicoativos, por agir no cérebro, alterando percepção, humor e consciência.

As atrizes Lucélia Santos e Maitê Proença, os cantores brasileiros Ney Matogrosso, Gilberto Gil, Milton Nascimento e o inglês Sting são apenas algumas das figuras públicas que, na década de 1980, concederam entrevistas sobre suas experiências pessoais com a bebida, ajudando a popularizar seu consumo.

Em 1984, o então ministro da Justiça, Ibrahim Abi-Ackel, declarou que questões relativas às religiões ayahuasqueiras não deveriam ser analisadas no âmbito militar ou policial, mas estudadas por profissionais de Medicina, Sociologia, Antropologia e História. Dois anos depois, o Ministério da Saúde, através da Divisão Nacional de Vigilância Sanitária de Medicamentos, forneceu parecer excluindo a ayahuasca da lista de substâncias proscritas do governo. Entretanto, seu uso religioso só foi plenamente regulamentado em 2010.

Nos anos 1990 surgiram as primeiras igrejas do Santo Daime e UDV nos EUA, Holanda, Alemanha, Espanha e Japão. Atualmente, as cerimônias ocorrem em mais de 30 países com dezenas de milhares de adeptos espalhados pelo mundo, sem contar o grande número de visitantes.

Sua expansão internacional, entretanto, esbarra no debate constante sobre sua legalidade. Por conter dimetiltriptamina, o consumo da ayahuasca é questionado em vários países. EUA e Holanda conseguiram o direito de praticar o ritual religioso da ayahuasca. No caso europeu, o nono artigo da Convenção sobre Direitos Humanos e Liberdades Fundamentais foi crucial, ao definir a liberdade religiosa como liberdade fundamental.

A sociedade globalizada contemporânea reúne, a um só tempo, o modelo proibicionista em relação às substâncias psicoativas com a política de “guerra às drogas” e traz, paralelamente, uma valorização de religiosidades de origem amazônica, onde as práticas rituais com influências ameríndias possuem número crescente de adeptos, inclusive nos centros urbanos do Brasil e do exterior.

Antropólogos, psiquiatras, neurocientistas e outros especialistas vêm trabalhando numa perspectiva multidisciplinar, que debate políticas públicas e amplia as aplicações terapêuticas de diversas substâncias psicoativas. O estudo do ritual da ayahuasca enriqueceu e ajudou a refinar esse debate, levando em consideração o contexto social de seu uso.

Uma pequena parte da comunidade científica brasileira estuda substâncias que alteram o estado da mente e consciência. Suas descobertas são marcantes e incluem novas abordagens terapêuticas para depressão e dependência química. Uma das raras situações em que deixamos de ser periféricos para nos tornarmos centrais no universo científico internacional. Curiosamente, beneficiados, num primeiro momento, pela liberdade religiosa de nosso país.