O globo, n. 30458, 27/12/2016. País, p. 3
GUSTAVO SCHMITT
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-SÃO PAULO- A vida para quem tem dinheiro ilegal fora do Brasil vai ficar mais difícil no ano que vem: a Receita Federal vai fechar o cerco contra contribuintes brasileiros que, segundo dados oficiais, guardam até R$ 265,9 bilhões no exterior. A partir de janeiro, o número de países com os quais o Brasil troca informações tributárias por meio de um acordo global vai aumentar de 34 para 103. A maior expectativa ficará por conta da abertura dos dados financeiros da Suíça, onde 8 mil brasileiros têm cerca de R$ 12 bilhões aplicados em bancos.
A troca de informações está prevista no âmbito da Convenção Multilateral para Intercâmbio Internacional Tributário, assinada em agosto. O acordo entre países membros da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) pretende combater o financiamento do terrorismo e crimes de lavagem de dinheiro.
Além da adesão da Suíça, o subsecretário de fiscalização da Receita, Iágaro Jung Martins, destaca a participação no acordo da OCDE de paraísos fiscais, como Ilhas Virgens Britânicas e Ilhas Cayman, onde investigados na Operação Lava-Jato esconderam recursos desviados do esquema de corrupção da Petrobras.
— É importante porque são países onde muitos dos acusados usavam offshores para ocultar recursos e que vão passar a nos fornecer informações — disse Martins. — Vamos passar a trocar informações com a receita da Suíça e de vários outros países por meio de sistemas refinados e sofisticados. Então, vamos poder verificar as contas desses brasileiros com grande capacidade contributiva.
MAIS DE R$ 100 BI EM PARAÍSOS FISCAIS
Para facilitar o pente-fino nas contas de brasileiros no exterior, a receita identificou os países onde os brasileiros têm mais dinheiro e bens. Em primeiro lugar, aparecem os Estados Unidos, onde há R$ 53 bilhões; seguido de Ilhas Virgens Britânicas, com R$ 43, 9 bilhões. A lista é completada por paraísos fiscais como Bahamas (R$ 27,8 bilhões); Ilhas Cayman (R$ 22,5 bilhões), Suíça (R$ 12 bilhões); Áustria (R$ 9,2 bilhões) e Portugal, com R$ 4,6 bilhões, entre outros. Esses países estão entre aqueles que assinaram e ratificaram a convenção da OCDE, com exceção das Bahamas.
— Os países que ficarem de fora do acordo serão de altíssimo risco porque não serão considerados transparentes e estarão suscetíveis a sanções internacionais. As fronteiras do mundo estão diminuindo também para a Receita — disse o subsecretário.
Martins complementa que uma das consequências do acordo é que quem não regularizou os recursos por meio da lei de repatriação — cujo prazo de adesão terminou em outubro — acabe migrando para países periféricos, como Irã e Venezuela, ou passe a se utilizar de bancos que não seguem regras de compliance.
O subsecretário ainda explicou que a convenção multilateral prevê, em tese, que as informações trocadas terão data de corte a partir de 2017. Contudo, adiantou que há possibilidade de retroagir. Ele disse que a receita negocia, por meio de acordos bilaterais com países como Suíça e Panamá, obter dados de anos anteriores, já que há um acordo nos mesmos moldes em vigor com os Estados Unidos.
INVESTIGAÇÕES FUTURAS
Dentre o potencial de informações que podem ser aprofundadas nas investigações da Receita estão transações feitas com participação de estrangeiros que não declararam imposto de renda. O fisco identificou 18.427 dessas operações de compra e venda de bens no Brasil, cujos valores somam R$ 8,7 bilhões.
A fiscalização também está de olho em rendimentos associados a 25 mil brasileiros nos Estados Unidos que somam mais de R$ 1 bilhão. Após a primeira fiscalização, a Receita descobriu que pelo menos 638 desses contribuintes, apesar de possuírem bens que geram renda nos Estados Unidos, não declararam ao imposto de renda brasileiro.
Para o Secretário de Cooperação Internacional da Procuradoria-Geral da República, Vladimir Aras, o acordo multilateral deve facilitar o caminho de investigações como a Lava-Jato e casos emblemáticos como os já vistos no escândalo Panama Papers. O fisco também tem como alvo offshores abertas no Panamá pelo escritório da Mossack Fonseca, que já estão na mira da LavaJato. Apesar de ter se tornado signatário do acordo em 27 de outubro, o Panamá ainda não o ratificou e, por enquanto, seu governo não começou a trocar dados fiscais na rede da OCDE. Para Aras, será mais fácil fiscalizar e punir sonegadores:
— É um cenário de maior risco para as pessoas, que estarão sujeitas a processo do ponto de vista tributário e penal. Teremos mais facilidade para obtenção da prova e de ressarcimento dos valores para o Brasil.
Para o procurador regional da república e coordenador jurídico da operação Lava-Jato, Douglas Fisher, o acordo facilita a apuração de crimes graves como sonegação, lavagem de dinheiro e evasão de divisas:
— Vai acabar com o sigilo fiscal internacional. Não haverá mais sigilo entre as receitas dos países membros da OCDE. Só quem tem algo a esconder que tem essa briga atrás do sigilo. A receita terá informações bancárias de contribuintes brasileiros, ela pode constatar que alguém cometeu um crime e comunicar ao Ministério Público para fazer uma ação penal — disse o procurador.
Fisher lembrou que somente por meio de acordo bilaterais entre Brasil e Suíça, a operação LavaJato já conseguiu cooperação das autoridades daquele país para bloquear R$ 800 milhões.
— Esse novo acordo, deve reduzir a burocracia para o acesso as informações dando mais autonomia para que os órgãos de fiscalização troquem informações.
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A situação de quem tem dinheiro não declarado fora do Brasil pode ficar menos dolorosa se a Câmara dos Deputados alterar a lei da repatriação de recursos no exterior. Embora o prazo para regularização do dinheiro tenha se encerrado no final de outubro, parlamentares articulam uma segunda rodada para repatriar. Em novembro, o Senado aprovou um projeto que reabre o prazo de adesão ao regime especial de repatriação de recursos do exterior. Contudo, a proposta enfrenta forte reação de membros da força-tarefa da Lava Jato, que reservadamente a tratam como “lavagem de dinheiro” oficializada.
De acordo com a proposta, o regime seria reaberto no ano que vem por mais 120 dias. Parlamentares chegaram a tentar incluir no texto a permissão de que parentes de políticos pudessem repatriar dinheiro, mas devido a reação da opinião pública e a repercussão negativa nas redes sociais acabaram retirando a proposta.
Em meio a um cenário de crise e de déficit orçamentário, a regularização de recursos não declarados ajudou a aliviar a situação dos cofres do governo federal. De acordo com a Receita, foram arrecadados mais de R$ 50 bilhões em impostos e multas. Ao todo, foram repatriados R$ 169,9 bilhões, que eram mantidos fora do país. O fisco recebeu documentos de 25.011 pessoas físicas, que detêm juntas R$ 163,9 bilhões. Elas pagaram R$ 24,9 bilhões em Imposto de Renda (IR) e o mesmo valor em multas.
Já em relação às empresas, houve apenas 103 declarações, somando cerca de R$ 6 bilhões. Elas pagaram R$ 909,7 milhões em IR e mais o mesmo montante em multas. Ao longo dos últimos meses, o programa de repatriação foi alvo de especulação. Parlamentares e governadores tentaram até o último minuto mudar as regras para a regularização de ativos mantidos no exterior.
O presidente da Câmara, deputado Rodrigo Maia (DEM-RJ), tentou colocar em votação um projeto pelo qual a multa arrecadada com o programa seria partilhada com estados e que mudava a base de cálculo do IR. No entanto, não houve acordo entre as lideranças e isso acabou sendo descartado. O texto também alterava a data final para a repatriação de 31 de outubro para 16 de novembro, o que pode ter adiado a adesão dos contribuintes à repatriação. Quando fixou a meta fiscal de 2016, de déficit primário de R$ 170,5 bilhões, o governo foi conservador com as estimativas de arrecadação de repatriação e só contava que receberia cerca de R$ 6,2 bilhões com esse programa, valor bem inferior ao resultado final.