O globo, n. 30458, 27/12/2016. Opinião, p. 14

Tema em discussão

Mudanças no ensino médio

Perda de tempo

 

Os problemas que o sistema educacional brasileiro — principalmente o público, mas que não absolve o privado — arrasta há tempos carregam um alto grau de dramaticidade. Não apenas pela atividade em si — como a qualidade rateia nas salas de aula, gerações têm sido condenados à baixa qualificação —, mas também devido à dificuldade de se implementar programas de melhorias.

Educação é até um setor em que há importantes consensos na sociedade. Existiu inclusive um encadeamento entre dois períodos de governo de campos políticos de grande divergência ideológica, a gestão tucana e o período petista. Com Fernando Henrique, por exemplo, atingiu-se a universalização nas matrículas no ciclo fundamental do ensino básico, e surgiram as primeiras ferramentas de avaliação da qualidade do ensino; no período do PT, entrou na agenda de maneira mais destacada a questão da qualidade, as ferramentas continuaram a ser desenvolvidas e a imprescindível reforma para redistribuir recursos públicos entre estados e municípios, iniciada com os tucanos (Fundef), chegou a todo o nível básico (Fundeb) com os petistas.

Mas discussões e embates explodem na execução de políticas. Um foco de divergências é a reforma do ensino médio. Aqui, há concordância geral que ele precisa melhorar, e muito. Porém, o envio, pelo governo Temer, de medida provisória para apressar as mudanças acendeu barulhento debate. Mesmo que um projeto de lei, com este objetivo, se arraste há anos no Congresso. Além disso, MP não significa que deixe de haver o devido processo legislativo, com debates, audiências, emendas e tudo o mais. Apenas — o que não é pouco — ela entra em vigor imediatamente (já passou para a Câmara, está no Senado). Para alongar a querela, o procurador-geral da República, Rodrigo Janot, acaba de considerar inconstitucional a via da MP. O caso vai para o Supremo.

É preciso levar em conta que o ensino médio patina há bastante tempo. Os índices de evasão caem ano a ano, mas continuam elevados. A proporção de jovens entre 15 e 17 anos fora da escola já foi de 40% em 1992 e chegou a 12% em 2015 — porém ainda é uma taxa alta.

Outro indicador que preocupa é o daqueles jovens, entre 18 e 24 anos, que não trabalham, nem estudam, os “nem nem”: de 2005 a 2015 têm oscilado entre 13,8% dessa faixa da população (2005) e 17,2% (2013). No ano passado, foi de 16,5%. Não é um quadro positivo. Devido a tudo isso, o ensino médio precisa passar por uma reforma no sentido das propostas encaminhadas ao Congresso: flexibilização por meio da criação de blocos de disciplinas a serem escolhidas pelo aluno ao concluir o fundamental, inclusive curso profissionalizante. Há sempre temas que geram polêmicas, algumas de fundo ideológico e partidário. Mas não se deve permitir que este tipo de conflito atravanque as mudanças. O Brasil está ainda muito atrasado na Educação, e isso impede o país de se desenvolver na plenitude. Até porque, uma condição essencial para isso — um grande contingente de jovens — se esgotará em mais 20 anos. (...)

 

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Reforma da maldade

 
 ISABELA QUEIROZ

 

A reforma do ensino médio, encaminhada pelo governo ao Congresso por meio da Medida Provisória 746/ 2016, está sendo imposta goela abaixo às escolas do país, sem que haja debate com estudantes ou consulta à sociedade. Ao falar sobre a MP, defendida pelo ministro da Educação, Mendonça Filho, seria injusto ignorar o contexto no qual ela surgiu. Desde 2015, o movimento estudantil esteve permanentemente na luta em defesa de uma educação pública, gratuita, democrática e de qualidade para todos os brasileiros. Ao ocuparem as escolas, é inegável que os estudantes chamaram a atenção da sociedade, garantindo importantes conquistas, como a instalação da CPI da Merenda e a revogação do fechamento de mais de mil escolas em São Paulo, além do direito de eleger as direções escolares no Rio de Janeiro.

Porém, o que tornou a manifestação contra a MP um movimento unificado e nacional foi a necessidade de participar da construção de algo que nos atinge diretamente, e que ficará de legado para as futuras gerações. É imprescindível que um governo minimamente comprometido com a formação de cidadãos respeite as deliberações da Conferência Nacional de Educação, reunindo não só estudantes, mas pais, profissionais da Educação, gestores, agentes públicos e membros da sociedade civil organizada, para formular metas a fim de alcançar uma educação de ponta.

Esse processo mergulhou estudantes do Brasil inteiro no debate em torno do que é a sua escola, lidando diretamente com os atuais dilemas educacionais. Nessa nova escola, o jovem se apropria do espaço escolar, democratizando o conhecimento, ocupando os espaços com manifestações culturais e políticas e cobrando responsabilidades com limpeza, alimentação e segurança. Tarefas antes vistas com displicência e jogadas para o âmbito da terceirização, que, como se vendesse às empresas os direitos trabalhistas, é a forma mais desumana de tratar integrantes tão essenciais da comunidade escolar.

Como dizia o educador Paulo Freire, o processo de aprendizado é uma tarefa que não pode ser deslocada da realidade social de um indivíduo, como a sua regionalidade e o seu histórico social. Cada um precisa ser tratado como protagonista do seu desenvolvimento intelectual. Ao acabar com a obrigatoriedade das aulas de artes e de educação física do ensino médio, indo na contramão das maiores potências mundiais, entre tantas outras arbitrariedades, a MP quer tirar isso da gente! Não queremos ser tratados como meras estatísticas, queremos ser parte da necessária reformulação do ensino médio.

A escola que a gente quer deve se inspirar na luta das ocupações e delas levar ensinamentos para que todos possam participar desse processo, entendendo que o caminho para uma educação emancipadora é a construção permanentemente conjunta.