O Estado de São Paulo, n. 44967, 28/11/2016. Internacional, p. A10-11

Nove dias de luto são controlados pelo regime

Muitos bares e restaurantes deixaram de vender bebidas alcoólicas, mas não estava claro se obedeciam a uma determinação oficial ou a uma orientação informal propagada nas ruas da cidade

Por: Cláudia Trevisan

 

HAVANA - Em um país onde o governo controla 80% da economia e emprega um porcentual semelhante dos trabalhadores, o luto é administrado pelo Estado. Assim que a morte de Fidel Castro foi anunciada, policiais determinaram o fechamento de danceterias e casas de espetáculo onde cubanos e turistas se reuniam na madrugada de sábado.

A apresentação que o tenor Placido Domingo faria no fim de semana foi cancelada e a música que marca o cotidiano de Havana deixou de ser ouvida. As medidas vão vigorar por nove dias, período oficial de luto decretado pelo governo. 

Muitos bares e restaurantes deixaram de vender bebidas alcoólicas, mas não estava claro se obedeciam a uma determinação oficial ou a uma orientação informal propagada nas ruas da cidade. Por garantia, muitos seguiram a sugestão, com medo de que acabassem desrespeitando a memória de Fidel ou fossem multados.

Mídia. Os canais de televisão e as rádios estatais suspenderam suas programações normais e passaram a transmitir de maneira incessante documentários sobre Fidel e reprises de seus discursos.

A maior manifestação popular em homenagem ao líder ocorrerá hoje e amanhã na Praça da Revolução, o grande símbolo do movimento que chegou ao poder em 1959. Foi lá que Fidel fez seus principais pronunciamentos – é, ainda, o local onde são realizados os desfiles militares e celebradas as principais datas. O local é marcado pelas imagens estilizadas dos rostos de Camilo Cienfuegos e Che Guevara, revolucionários que lutaram na guerrilha que levou à queda do regime de Fulgencio Batista.

As milhares de estatais e outras entidades ligadas ao governo organizarão caravanas de funcionários para assinar o livro de condolências na Praça da Revolução, onde operários trabalhavam ontem na montagem de uma tribuna e na instalação de um sistema de som. “Nós iremos à Praça da Revolução para apoiar o conceito de revolução de Fidel. Nós amamos e continuaremos a amar Fidel”, disse Roberto Hernandez Peres, de 57 anos e funcionário público, como a maioria dos cubanos.

Rito. Obedecendo à vontade de Fidel, seu corpo foi cremado no fim de semana e as cinzas ficarão em Havana hoje e amanhã. Na quarta-feira, será iniciado o transporte delas para Santiago de Cuba, a cidade onde o líder cubano declarou a vitória da Revolução no dia 1º. de janeiro de 1959. 

O trajeto de pouco mais de 800 km será percorrido em quatro dias, durante os quais a população da zona rural e de pequenas cidades poderá prestar a última homenagem a Fidel. O trajeto será o inverso do percorrido pelo líder em direção a Havana desde a Sierra Maestra. 

As cinzas do revolucionário serão depositadas no domingo no cemitério Santa Ifigênia, onde está enterrado José Martí, o herói nacional que lutou pela independência de Cuba no século 19.

Vigilância. O policiamento nas ruas de Havana foi reforçado desde o anúncio da morte de Fidel e havia viaturas em locais estratégicos da cidade, entre os quais a igreja na qual as militantes do grupo dissidente Damas de Branco costumam realizar sua marcha dominical contra o governo. 

Ontem, nenhuma delas estava no local. A líder do movimento, Berta Soler, disse por telefone à reportagem que as casas da maioria das damas amanheceram cercadas pela polícia. Ainda assim, ela afirmou que o grupo já havia definido não realizar qualquer tipo de manifestação de rua na cidade durante os dias de luto oficial. “Decidimos não fazer a marcha para não parecer uma provocação e porque não comemoramos a morte de ninguém, nem mesmo a de um ditador.”

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O caminho para o degelo religioso na ilha

Em 1981, como jurado do Prêmio Casa das Américas de Literatura, um membro do governo cubano me pediu para colocá-los em contato com o episcopado brasileiro para intermediarem a retomada das relações com a Igreja

Por: José de Souza Martins

 

Numa visita dos jurados do Prêmio Casa das Américas de Literatura à casa de Armando Hart, ministro da Cultura, os brasileiros ficaram sentados em cadeiras no pequeno jardim: Gianfrancesco Guarnieri e Vanya, João Ubaldo Ribeiro e Berenice, Márcio Souza e eu. Pouco depois, chegava Fidel Castro. Sentou-se numa das cadeiras, no meio dos brasileiros. Sua conversa com o grupo, sobre política e livros, estendeu-se por três horas. Disse que lia muito à noite, pois sofria de insônia. Antes de sair, Fidel entregou a cada um de nós três garrafas de barro de rum de uma reserva especial. Estava no fim do terceiro charuto. Jogou o toco no chão e pisou. Quando levantou o pé, agarrei o charuto. Mais tarde, no ônibus, mostrei-o aos cubanos, que lamentaram não ter tido a mesma ideia.

Naquela noite, conversamos com Raúl Castro. Comigo, falou da presença cubana na África e das dificuldades da língua portuguesa. Voltaríamos a encontrar Fidel num almoço em que fez uma exposição sobre as dificuldades causadas ao país pelo embargo americano. Mesmo na exiguidade de recursos, suprimiram o analfabetismo, a medicina era gratuita e todos eram protegidos pela seguridade social.

Eu ainda não tinha clareza sobre o motivo do convite que recebera para fazer parte do júri do Prêmio Casa das Américas de Literatura Brasileira, que se reuniria em janeiro de 1981. Também lá estavam Gilda de Melo e Souza e o professor Antonio Candido, que seria homenageado no Encontro Latino-americano de Escritores.

Numa manhã, um sujeito em mangas de camisa me procurou no saguão do hotel. Convidava-me para jantar no restaurante El Conejito. O governo cubano estava interessado em conseguir que o Vaticano levantasse o bloqueio que impusera a Cuba depois que padres espanhóis, de armas nas mãos, foram capturados na invasão da Baía dos Porcos. Dada a condição de religiosos, haviam sido poupados dos fuzilamentos. Mesmo assim, a Cúria Romana não nomeara um substituto quando morreu o cardeal de Havana e os padres restringiam seus serviços. Não consegui conversar com nenhum, nem no Cemitério de Colón, onde sempre haveria um de plantão.

Durante o jantar, o anfitrião disse-me que o governo cubano queria um contato com o episcopado brasileiro para quebrar o gelo nas relações com a Igreja. O sonho era o de que a Igreja cubana, como a brasileira, estimulasse as comunidades eclesiais de base. Os bispos brasileiros poderiam ajudar. Queria sugestões para que o contato fosse feito com as pessoas certas. Disse-lhe que a conversa teria de ser por meio de bispos, não de leigos. Propus-lhe que, por meio da Casa das Américas, convidassem um bispo brasileiro para ir a Cuba para uma atividade cultural. Teria de ser um bispo escritor. 

A pessoa mais indicada era Dom Pedro Casaldáliga, poeta. Mas Dom Pedro sofria, da ditadura, a ameaça constante de expulsão do Brasil. Nesse caso, era um recurso em última instância. Talvez fosse o caso de convidar Frei Betto, dominicano, muito ligado às comunidades eclesiais de base. Ele poderia fazer consultas e achar um modo de colocar a Igreja do Brasil na missão do degelo entre o Vaticano e Cuba. Frei Betto acabaria indo a Cuba, entrevistaria Fidel e escreveria o livro Fidel e a Religião, que o Papa João Paulo II leria e o influenciaria em relação à mudança nas relações com Cuba.

* JOSÉ DE SOUZA MARTINS É ESCRITOR E SOCIÓLOGO