Imigração e caos

Sérgio Roxo

06/11/2016

 

 

Onda de venezuelanos muda vida de Pacaraima, com explosão de violência e questões sociais

 

PACARAIMA (RR) E BOA VISTA- Como tem sido rotina nos últimos cinco meses, o movimento era intenso na principal via de comércio de Pacaraima, cidade de Roraima e porta de entrada no Brasil de venezuelanos que fogem da crise no país vizinho. Uma briga, no meio da rua, a pouco metros da BR-174, porém, interrompeu a frenética negociação de compra e venda de alimentos. Josue Manoel Perez Arroyo, de 21 anos, levou uma facada na barriga, deu alguns passos e caiu estirado na sarjeta. Também atingido, seu irmão mais velho, Elvis Yonathan Perez Arroyo, de 30 anos, conseguiu entrar num táxi, que o levou para o hospital, mas não resistiu.

O duplo homicídio de venezuelanos no dia 3 de outubro em plena luz do dia, num município de 12 mil habitantes que não registrava um assassinato há três anos, simboliza as transformações que o aumento do fluxo de estrangeiros provocou na região. Com dezenas de pessoas vivendo nas ruas, a cidade tem enfrentado um verdadeiro caos urbano. Um mês antes, um outro venezuelano, Jose Alberto Perez Torrealba, também foi morto a facadas, enquanto dormia na varanda de um botequim.

O estado de Roraima registra este ano uma explosão no número de venezuelanos detidos por cometerem crimes. Durante todo o ano passado, apenas 12 foram presos. O número saltou para 80 até setembro deste ano.

A delegada chefe do Departamento de Narcóticos (Denarc) do estado, Francilene Hoffmann, acredita que a maioria das prisões está relacionada ao tráfico de drogas, apesar de o governo não ter um detalhamento da motivação.

— Precisamos ainda apurar se esses presos vieram nesse fluxo de imigração por motivação social que está invadindo o Brasil.

Em Pacaraima, além dos três assassinatos, a cidade também vive uma onda de furtos. A estimativa de policiais é que sejam cerca de dez casos por semana.

— Só no meu estabelecimento foram dez roubos nos últimos três meses, todos praticados por venezuelanos. Nem as câmeras de segurança inibem. Ninguém aqui tem mais tranquilidade — se queixa Ivanice Morais, de 34 anos, dona de um mercado.

O aumento dos furtos na cidade provoca reação dos comerciantes locais.

— Com medo da violência, os comerciantes passaram a se armar. As armas são adquiridas de forma ilegal no outro lado da fronteira. A cidade virou um barril de pólvora — afirma o promotor Diego Oquendo, do Ministério Público Estadual.

A morte dos irmãos Arroyo traz um pouco dos ingredientes desse clima de tensão que dominou o município. De acordo com as investigações da polícia e do Ministério Público, poucos dias antes de serem assassinados, os dois tinham sido torturados a mando de comerciantes que suspeitavam do envolvimento deles em furtos. Dois comerciantes chegaram a ter a prisão decretada por see rem identificados como mandantes das torturas. Eles fugiram antes do cumprimento do mandado judicial e estão foragidos.

Para executar a tortura, os comerciantes contrataram venezuelanos. Dias depois de serem agredidos, os irmãos Arroyo identificaram um de seus agressores e resolveram cercá-lo na rua. Como reação, esse suposto agressor, um venezuelano de 17 anos, sacou uma faca e acabou com a vida deles. Ele foi pego pela polícia venezuelana do outro lado da fronteira e entregue às autoridades brasileiras.

FALTA DE MEDICAMENTO

Mas a violência não é a única consequência da explosão de imigrantes venezuelanos na região. Segundo a Polícia Federal, o posto de Pacaraima registrou 58.211 entradas no Brasil entre outubro de 2015 e outubro deste ano. As autoridades dizem que o fluxo se acelerou nos últimos cinco meses e isso está sobrecarregando o hospital local.

Os venezuelanos representam hoje entre 60% 70% dos atendimentos feitos na unidade de saúde de Pacaraima. Por causa disso, o hospital sofre com falta de medicamentos, como antitérmicos e anti-inflamatórios.

— Dos que recebem tratamento de malária e leishmaniose aqui, 90% são venezuelanos — relata o diretor administrativo do hospital, Alsheldson de Jesus.

A unidade de saúde também é obrigada a lidar com um outro problema que é consequência direta da situação da escassez de alimentos do país vizinho: a subnutrição de crianças.

— Entre 10% e 15% das crianças venezuelanas que atendemos estão com subnutrição. Algumas estão num estado tão crítico que não conseguimos nem fazer aplicação de soro na veia. Precisamos mandar para Boa Vista — conta Alsheldson.

Outra consequência são as invasões de casas desocupadas. Ex-funcionário da PDVSA, estatal de petróleo que antes da crise era símbolo do país, Raul Blanco, de 52 anos, que está há três meses na cidade e vive de descarregar caminhões, é um dos venezuelanos que ocuparam imóveis.

— Morava na rua, dormia num ponto de táxi, mas consegui uma casa abandonada, pedi autorização para o vizinho, limpei e estou ocupando. Não estou me apropriando, mas só usando por um tempo.

O aumento rápido da população tem provocado acúmulo de lixo. Ao amanhecer, a cidade é tomada por urubus, como se fosse um lixão. Terrenos baldios são usados como banheiro. Por causa do grande tráfego de caminhões para abastecer as lojas, as ruas estão tomadas por crateras.

— A rede de energia também está sobrecarregada porque muita gente fez ligação irregular. É comum cair a luz. O abastecimento de água também está sofrendo — afirma a secretária de Promoção Social de Pacaraima, Socorro Lopes dos Santos.

Para quem dorme na rua, varandas de casas desocupadas e até o terminal de ônibus da cidade servem de abrigo. Crianças também passam a noite ao relento. Na última terça-feira, a venezuelana Katicia Roja, de 40 anos, seus cinco filhos, sua irmã e até o neto recém-nascido de apenas 4 dias se dividiam entre entre papelões esticados no chão e uma rede. Dona de um terreno em Santa Elena de Uairén, a cidade venezuelana que faz fronteira com Pacaraima, Katicia está no Brasil há 15 dias e tenta trabalhar como faxineira. O filho descarrega carretas.

— Quero ficar aqui até juntar dinheiro para comprar uma lona para montar uma casa no meu terreno. Na Venezuela, não tem mais nada — conta.

 

 

O globo, n. 30407, 06/11/2016. País, p. 03.