Por vida melhor, profissões e terra natal deixadas para trás

Sérgio Roxo

06/11/2016

 

 

Na maternidade de Boa Vista, 18% dos partos são de filhos de venezuelanas

 

Mestre em Engenharia e chefe de uma equipe de dez pessoas numa construtora que fazia obras para a PDVSA, ele deixou tudo para trás para ser auxiliar de pizzaiolo em Boa Vista. Ela abandonou a carreira de engenheira civil para ser manicure. Na última terça-feira, o casal de venezuelanos Jose Alberto Gimenez, de 27 anos, e Angely Brismary, de 24, teve um filho na maternidade pública da capital de Roraima e espera que o fato de agora contar com um brasileiro na família ajude a regularizar sua situação no país.
Apesar das dificuldades por terem deixado as suas profissões e a terra natal, os dois estão felizes por a criança ter nascido no Brasil.

— Ainda bem que ele nasceu aqui. Na Venezuela, a gente tem que ficar uma semana na fila para conseguir um pacote de fraldas, e você só pode pegar um por mês. Os bebês usam quase um por dia. Muita gente está usando fralda de pano — celebra o pai.

A mãe, que até quinta ainda estava internada na maternidade, lembra que no seu país também não há vitamina C e outros medicamentos usados pelos recém-nascidos.

Angely veio primeiro para o Brasil, há oito meses. Ao saber que ela estava grávida, Jose abandonou o emprego na cidade de Puerto Píritu, a 260 quilômetros de Caracas, e se mudou para Boa Vista.

— Eu ganhava dez salários mínimos, que dava 100 mil bolívares. Isso vale cerca de R$ 350. Não dava para comprar nada — conta Jose.

O casal apresentou pedido de refúgio para as autoridades brasileiras e espera que agora, com o nascimento de um filho no país, possa reduzir o tempo de apreciação do processo de dois anos para seis meses. O status de refugiado é dado para pessoas que sofrem perseguição política.

— Vamos alegar que a gente não ganhava o suficiente para comer. Isso também é um motivo para nos concederem o refúgio — argumenta Angely.

O sonho do casal é ter os títulos universitários obtidos na Venezuela validados para poderem trabalhar como engenheiros no Brasil.

— O (presidente Nicolás) Maduro proibiu que os diplomas de venezuelanos sejam reconhecidos. Se quiser sair do país, que saia sem diploma. Isso é um absurdo — diz Jose.

Jose e Angely não são os únicos pais venezuelanos na maternidade de Boa Vista. Os reflexos da explosão de imigração em Roraima ocorrido nos últimos meses são sentidos no local. Entre janeiro e outubro deste ano, 610 venezuelanas foram atendidas na unidade. Durante todo o ano passado, 453 mulheres do país haviam passado pela maternidade. Segundo a direção, 18% dos partos realizados mensalmente no local hoje são de filhos de venezuelanos.

Como consequência, o hospital enfrenta superlotação. Há duas semanas, de acordo com funcionários, dezenas de mulheres eram obrigadas a aguardar a sua vez de dar à luz no corredor. Parte das venezuelanas que procuram a maternidade de Boa Vista já vive em Roraima, mas há muitos casos também de grávidas que vêm ao Brasil apenas para fazer o parto e fugir do atendimento precário nas unidades de saúde do país vizinho.

Outra face da crise venezuelana é visível nas ruas comerciais de Pacaraima. Os comerciantes do município costumam aceitar normalmente bolívares nas compras. Mas, devido à desvalorização da moeda do país vizinho, são necessárias malas para carregar o dinheiro. Os donos de estabelecimentos brasileiros impõem uma taxa de câmbio em que R$ 1 vale 520 bolívares.

Jesus Reys saiu de Barcelona, no litoral venezuelano, viajou 24 horas de carro, para comprar arroz e produtos de higiene. Numa mala, carregava dois milhões de bolívares. Nos últimos meses, ele costuma visitar Pacaraima três vezes por semana.

— Revendo na minha cidade porque lá não tem nada — comentou.

Os comerciantes de Pacaraima negociam produtos em fardos. Nos últimos meses, quase todas as lojas, mesmo as de autopeças e roupas, por exemplo, passaram a vender arroz, farinha de trigo, açúcar e café para se aproveitar da demanda dos estrangeiros.

Para os venezuelanos que vivem nas ruas da cidade brasileira, o principal trabalho disponível é descarregar as carretas que abastecem as lojas. Normalmente, cada um recebe R$ 15 por carreta. Mas, devido à abundância de mão de obra, os lojistas têm barganhado e chegam até a pagar carregadores apenas com produtos.

No último dia 20, uma forçatarefa, formada pelo Ministério Público, pela Receita Federal, pelo Ministério do Trabalho e pela Vigilância Sanitária, realizou uma blitz no comércio local em busca de produtos vendidos fora das condições sanitárias e trabalhadores contratados de modo irregular.

— Realizamos a prisão de três empresários por venderem alimentos com prazos de validade vencidos e guardados de forma inadequada. Foram aplicadas também 31 multas por contratações de venezuelanos de forma irregular — afirmou o promotor Diego Oquendo.

 

 

O globo, n. 30407, 06/11/2016. País, p. 04.