O Estado de São Paulo, n. 44969, 30/11/2016. Metrópole, p. A12
 
1ª Turma do STF considera que aborto até 3º mês não é crime e livra médicos

 

Rafael Moraes Moura

 

A 1.ª Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) abriu ontem precedente ao entender que não é crime o aborto realizado durante o primeiro trimestre de gestação – independentemente do motivo que leve a mulher a interromper a gravidez. Em reação, no início da madrugada, a Câmara dos Deputados criou uma comissão para discutir o tema.

A decisão valeu apenas para um caso, envolvendo funcionários e médicos de uma clínica clandestina em Duque de Caxias (RJ) que tiveram a prisão preventiva decretada. Mesmo assim, pode servir como base para decisões de juízes de outras instâncias pelo País.

Durante o julgamento, os ministros Luís Roberto Barroso, Edson Fachin e Rosa Weber se manifestaram no sentido de que não é crime a interrupção voluntária da gestação efetivada no primeiro trimestre, além de não verem requisitos que legitimassem a prisão cautelar dos funcionários e dos médicos da clínica, como risco à ordem pública, à ordem econômica ou à aplicação da lei penal.

Os ministros Luiz Fux e Marco Aurélio Mello, que também compõem a 1.ª Turma, concordaram com a revogação da prisão preventiva por questões processuais, mas não se manifestaram sobre a descriminalização do aborto nos primeiros três meses de gestação.

“Em temas moralmente divisivos, o papel adequado do Estado não é tomar partido e impor uma visão, mas permitir que as mulheres façam a sua escolha.

O Estado precisa estar do lado de quem deseja ter o filho. O Estado precisa estar do lado de quem não deseja – geralmente porque não pode – ter o filho.

Em suma: por ter o dever de estar dos dois lados, o Estado não pode escolher um”, defendeu em seu voto o ministro Barroso.

 

Congresso. Houve reação rápida na Câmara dos Deputados. Os parlamentares paralisaram a discussão do pacote anticorrupção e se revezaram ao microfone para dizer que a decisão é na prática “descriminalização” do aborto. “Está instituído o assassinato! É abominável essa decisão”, protestou Luiz Carlos Hauly (PSDB-PR).

Mais tarde, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), anunciou a criação de uma comissão especial para analisar a legislação que regulamenta o aborto no País. “Quando o STF decide legislar, temos de responder, ratificando ou retificando”, disse, sob aplausos dos parlamentares.

A ideia é incluir o debate na PEC 58/2011 que dispõe sobre “licença maternidade em caso de nascimento prematuro”.

 

Justificativas. Barroso destacou que em países desenvolvidos e democráticos, como Estados Unidos, Portugal, França, Itália, Canadá e Alemanha, a interrupção da gravidez no primeiro trimestre não é considerada crime. “É dominante no mundo democrático e desenvolvido a percepção de que a criminalização da interrupção voluntária da gestação atinge gravemente diversos direitos fundamentais da mulher, com reflexos visíveis sobre a dignidade humana”, ressaltou. “Durante esse período (da gravidez), o córtex cerebral – que permite que o feto desenvolva sentimentos e racionalidade – ainda não foi formado nem há qualquer potencialidade de vida fora do útero materno.” O ministro do Supremo ainda elencou uma série de direitos fundamentais que seriam incompatíveis com a criminalização do aborto até o terceiro mês de gestação: os direitos sexuais e reprodutivos da mulher; a integridade física e psíquica da gestante; e a igualdade da mulher, “já que homens não engravidam e, portanto, a equiparação plena de gênero depende de se respeitar a vontade da mulher nessa matéria”.

Atualmente, o Código Penal Brasileiro prevê que o aborto não é crime em caso de estupro ou de risco de vida da gestante.

O entendimento de Barroso, Rosa e Fachin foi o de que os artigos que tipificam o crime de aborto não deveriam incidir sobre a interrupção da gestação feita até o terceiro mês, já que a criminalização nesse caso violaria direitos fundamentais da mulher. / COLABORARAM DAIENE CARDOSO e ISADORA PERON

 

Debate. Para Barroso, papel do Estado não é tomar partido, mas permitir que mulheres façam sua escolha

 

E depois?

Apesar de votar pela descriminalização, Barroso indicou que a penalização pode ser aplicada para abortos feitos a partir do 3º mês.

_________________________________________________________________________________________________________________________________________________________

 

‘Decisão é extraordinária’, diz secretária de Temer

 

A secretária de Direitos Humanos de Michel Temer, Flávia Piovesan, considerou “extraordinária” a decisão do STF. Ela ainda destacou que o aberto é questão de saúde pública.

 

Como recebeu a decisão?

É uma decisão que eu reputo extraordinária por enfocar o aborto como questão de saúde e não caso de polícia. O Comitê de Direitos Humanos da ONU é enfático em encorajar os Estados a revisitar a legislação repressiva do aborto, a fim de que seja considerado problema de saúde pública.

 

O ministro Luís Roberto Barroso tratou de igualdade de gênero. Como avaliou esse argumento?

Fundamental. Cada vez mais nossa jurisprudência deve incorporar a perspectiva de gênero e suas relações assimétricas de poder , que foram construídas historicamente. São as mulheres que devem ter protagonismo e direito a voz. Eu me indago: quantas mulheres havia no Congresso quando o Código Penal foi adotado em 1940? Havia um vazio.

 

Não caberia ao Estado interferir na decisão da mulher?

Defendo o direito à liberdade, à autodeterminação, o direito ao exercício dos direitos sexuais e reprodutivos de forma livre, plena e responsável. O Estado brasileiro é laico, de acordo com a Constituição.

 

Como está a discussão do aborto no governo?

Hoje há pautas mais emergenciais no Congresso. No governo, há divergência entre mim e a secretaria das Mulheres (Fatima Pelaes, que é contra o aborto). A democracia requer pluralismo, diálogo, divergência e respeito. No terreno de direitos sexuais e reprodutivos, o Congresso é um ambiente desafiador. O Supremo realiza sua missão ‘contramajoritária’, preservando direitos. / WILLIAM CASTANHO

 

Microcefalia por zika

O novo entendimento da 1ª Turma foi dado uma semana antes de o plenário da Corte discutir o aborto no caso de mulheres grávidas infectadas pelo vírus da zika.