O Estado de São Paulo, n. 44947, 08/11/2016. Espaço aberto, p. A2

Morte severina e mitos da reforma da Previdência

Por: Pedro Fernando Nery

 

“Morrem o s d e morte igual, mesma morte severina: que é a morte que se morre de velhice antes dos trinta, de emboscada antes dos vinte, de fome um pouco por dia.” A morte severina do poema de João Cabral de Melo Neto reflete-se na expectativa de vida ao nascer. Esse indicador é afetado por mazelas nacionais como a mortalidade infantil e a morte de jovens por causas externas (homicídios, trânsito).

Grosso modo, a expectativa de vida ao nascer está relacionada com a idade média com que as pessoas falecem no País.

Esse dado vem sendo equivocadamente usado para justificar que uma reforma da Previdência faria as pessoas “trabalharem até morrer”. Seria injusto estabelecer uma idade mínima, por exemplo, de 65 anos, se em alguns Estados a expectativa de vida é de 66, 68 anos.

Na verdade, o indicador relevante nessa discussão não é a expectativa de vida no nascimento, mas a expectativa de sobrevida na idade de aposentadoria.

É por conta dela que se diz que estamos vivendo muito mais, o que pressionaria a Previdência.

A expectativa de sobrevida em idades mais altas não é afetada pela morte severina.

Nas idades médias em que se dá a aposentadoria por tempo de contribuição no Brasil, 55 anos para homens e 52 anos para mulheres, a expectativa de sobrevida é respectivamente de 24 e 30 anos. Assim, a expectativa de vida é de 79 anos para homens e 82 anos para mulheres, bem acima da expectativa de vida ao nascer (72 para eles, 79 para elas), e dos 66 anos do meme “trabalhar até morrer” que circula nas redes.

De fato, mesmo com ganhos expressivos na redução da mortalidade infantil, a expectativa de vida dos homens ao nascer aumentou nas últimas décadas menos da metade do que cresceu a expectativa de sobrevida dos mais velhos. Juntamente com a veloz redução da taxa de natalidade no País, é isso que pressiona a Previdência e seu desequilíbrio atuarial (medido em trilhões).

O uso da expectativa de vida ao nascer no debate previdenciário, além de incorreto, é incômodo: usa-se a mortalidade infantil para justificar transferências para grupos de faixas etárias mais avançadas. Essa não é uma questão trivial, uma vez que a pobreza no Brasil está desproporcionalmente concentrada nas crianças.

A discussão da distribuição de renda se relaciona também a outro mito da reforma da Previdência: o de que uma idade mínima para a aposentadoria por tempo de contribuição prejudica os mais pobres, que ingressam cedo no mercado de trabalho. Diversos estudos têm mostrado que os trabalhadores mais pobres não usufruem a aposentadoria por tempo de contribuição.

A exigência de 30/35 anos de tempo de contribuição dessa modalidade de aposentadoria não pode ser cumprida por ampla parcela da população, que tem precária inserção no mercado de trabalho, alternando em sua vida períodos de desemprego, informalidade e carteira assinada. Na verdade, a maioria da população recorre a outro tipo de aposentadoria, a por idade, que requer 15 anos de carteira assinada, mas idade mínima de 65 anos para homens e 60 para mulheres.

Outra parcela da população, com menos de 15 anos de contribuição, só pode recorrer a um benefício assistencial de um salário mínimo com a idade mínima de 65 anos, até para mulheres.

Assim, a idade mínima para a aposentadoria por tempo de contribuição não pode prejudicar os mais pobres, já que para eles a idade mínima sempre existiu.

Para várias ocupações e regiões do País outros pagamentos são mais relevantes, como a aposentadoria rural. É nesse e em outros benefícios associados ao salário mínimo que deveria concentrar-se a preocupação com os efeitos da reforma da Previdência na desigualdade de renda.

Outro tema que merece ser visto com ceticismo é a tese de que a Previdência é superavitária, seu déficit seria uma farsa.

Há várias questões legítimas no debate sobre o que deve ser receita ou despesa do INSS, mas seria mito dizer que o nosso problema previdenciário é resolvido com mudanças na contabilidade. O problema concreto é o crescimento da despesa, que decorre de um problema físico, demográfico.

Disputas em torno da contabilidade do sistema são naturais e ocorreram em outros países, mas não podem tirar o foco da questão principal. Ilustrativamente, nem mesmo os militares aceitam a contabilidade do seu regime, defendendo a ideia de que o déficit deles é de metade do que vinha sendo entendido.

Por sua vez, o TCU não aceita a tese de superávit no INSS.

Do lado da receita, deve ser lembrado que a Desvinculação de Receitas da União (DRU) historicamente teve como perdedores Estados e municípios, não a Previdência. A União precisava de dinheiro: se aumentasse impostos, deveria dividi-los com os entes. O jeitinho, de sucessivos governos, foi aumentar contribuições e desvinculálas via DRU. Também precisa ficar claro que trazer recursos da DRU para expandir a Previdência significa retirá-los de despesas que já serão significativamente comprimidas com o aumento da despesa previdenciária diante do teto de gastos.

Do lado da despesa, deve ser esclarecido que mesmo a clientela urbana do INSS apresentou déficits até 2009, com previsão de voltar a apresentá-los de 2016 em diante. Esse é um ponto importante para quem defende a tese de que sem os rurais a Previdência é sempre superavitária.

Nos próximos meses o Brasil passará por um amplo debate sobre sua Previdência. Pelo seu tamanho, ela é uma grande conquista e um grande desafio. Discutiremos se financiá-la nos moldes atuais é insustentável ou se mudar suas regras é retroceder em direitos conquistados.

(...)

 

CONSULTOR LEGISLATIVO DO NÚCLEO DE ECONOMIA DO SENADO

 

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