Benefícios cancelados

André de Souza

08/11/2016

 

 

Governo interrompe o pagamento para 1,1 milhão que recebem o Bolsa Família

 

-BRASÍLIA- O governo federal cancelou ou bloqueou o pagamento de cerca de 1,1 milhão benefícios do Bolsa Família. A medida foi adotada após a realização de um pente-fino no programa, que atende a 13,9 milhões de famílias. Isso significa que em um de cada 12 benefícios foram encontradas inconsistências. Segundo o Ministério do Desenvolvimento Social e Agrário, responsável pelo programa, foi constatado que a renda das famílias é superior à exigida para ingresso e permanência no Bolsa Família.

O ministério informou ontem que a suspensão dos benefícios proporcionará um corte de custos de R$ 2,4 bilhões anuais. Isso, porém, não significará necessariamente uma economia. Segundo o ministro do Desenvolvimento Social, Osmar Terra, o dinheiro continuará na pasta, podendo ser usado, por exemplo, para reajustar os valores dos benefícios mantidos.

De acordo com o ministério, 469,6 mil benefícios (3,3% do total) foram cancelados. Outros 654,4 mil (4,7%) foram bloqueados — uma medida temporária, que pode ser revertida caso o beneficiário prove que não houve irregularidade. O Bolsa Família é voltado para famílias extremamente pobres, com renda per capita mensal de até R$ 85, e pobres, com renda entre R$ 85,01 e R$ 170.

Em janeiro de 2017, serão convocadas 1,4 milhão de famílias para atualizar o cadastro. Nesses casos, há inconsistências quanto à renda informada, mas não o suficiente para justificar o bloqueio ou cancelamento do benefício.

 

NOTIFICAÇÃO APENAS NO MOMENTO DO SAQUE

Segundo o ministério, foram cancelados os benefícios de famílias com renda per capita acima de R$ 440. Os bloqueios ocorreram em famílias com renda acima de R$ 170, mas abaixo de R$ 440. Nesses casos, os beneficiários terão a chance de provar que sua renda não ultrapassa o teto de R$ 170 por pessoa para poder desbloquear o pagamento do programa.

As famílias com benefícios bloqueados terão três meses para procurar os gestores municipais do Bolsa Família para regularizar sua situação. O bloqueio será informado no momento em que o beneficiário tentar sacar o dinheiro do programa. Caso resolvido o problema, a família terá à disposição, retroativamente, os benefícios dos meses em que durou o bloqueio.

Quem teve o benefício cancelado também terá três meses para demonstrar que houve erro do ministério. Mas o governo diz que, nesses casos, será mais difícil convencer os gestores do Bolsa Família de que houve falha, uma vez que foi identificado que os beneficiários têm uma renda bem maior que a exigida pelo programa.

— Para aquelas que foram canceladas é bem pouco provável que (as famílias) tenham uma explicação consistente a dar, porque a renda é muito maior do que estava previsto pelo Bolsa Família — afirmou Osmar Terra.

São Paulo, o estado mais populoso do Brasil, foi o que teve mais cancelamentos, 80.013, seguido por Bahia, com 55.624. Nos bloqueios, a situação se inverte: a Bahia teve o maior número, com 77.028, seguido de São Paulo, com 76.516. O Estado do Rio teve 43.732 bloqueios e 36.004 cancelamentos. Outros estados com números absolutos altos são Minas Gerais, Pernambuco, Ceará e Maranhão.

Proporcionalmente ao tamanho da população beneficiada pelo programa, as cidades com mais bloqueios e cancelamentos estão no Sul do país. Das dez com mais bloqueios, quatro são do Rio Grande do Sul e três de Santa Catarina. Há ainda uma de Goiás, uma de Pernambuco e uma de São Paulo. Na lista das cidades com mais cancelamentos, quatro são catarinenses, três gaúchas e uma paranaense. As outras duas são de São Paulo.

Lacerdópolis, em Santa Catarina, a 400 quilômetros de Florianópolis, foi percentualmente o município com mais bloqueios: 36,36% do total de benefícios. Em seguida vêm duas cidades gaúchas, com 33,33% de benefícios bloqueados: Montauri e Poço das Antas. Em relação aos cancelamentos, o maior índice está em Treviso (SC), a 200 quilômetros de Florianópolis, com 25,93%. Depois aparecem Picada Café (RS), com 23,08% dos benefícios cancelados, e Vargem Bonita (SC), com 18,89%.

Segundo Osmar Terra, os números absolutos nos estados do Nordeste tendem a ser mais altos, uma vez que possuem mais beneficiários, mas proporcionalmente é no Sul onde há mais bloqueios e cancelamentos.

— Os estados do Norte e Nordeste têm a metade das famílias do Bolsa Família. Têm números muito maiores, mas a dinâmica da economia no Sul é maior. Então, a probabilidade de se ter no Sul renda maior do que a exigida no programa também é maior — disse o ministro.

Em números absolutos, predominam as capitais e grandes cidades, que têm população maior. São Paulo e Rio de Janeiro, as duas maiores do país, foram as que mais registraram bloqueios: 24.197 e 12.510 respectivamente. Os dois municípios também lideram os cancelamentos: 28.644 em São Paulo e 11.887 no Rio.

Para chegar a esses resultados, foram cruzados dados de várias fontes: Relação Anual de Informações Sociais (Rais), Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged), Sistema de Controle de Óbitos (Sisobi), cadastro do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), Sistema Integrado e Administração de Recursos Humanos (Siape), e Cadastro Nacional de Pessoas Jurídicas (CNPJ).

De acordo com o ministério, o uso dessas fontes de dados permitirá fazer análises mensais, identificando mais rapidamente quem está acima da renda exigida para participar do programa. O cruzamento de dados também será feito antes da concessão de novos benefícios.

— Se todo mês fizermos um pente-fino, tenho certeza de que vamos separar o joio do trigo e garantir que aqueles que realmente precisam recebam, e até recebam um valor maior, porque o recurso vai ficar no programa. E aqueles que não precisam fiquem fora — disse o ministro.

 

IRREGULARIDADES X FALCATRUAS

Terra evitou falar em fraudes, dizendo que foram constatadas irregularidades, como famílias que passaram a ganhar mais do que o máximo permitido para participar do programa. Mas não descartou que investigações posteriores levem à descoberta de falcatruas:

— Com o resultado deste pente-fino, vamos poder avançar em algumas investigações, até para ver se tem falcatrua ou não. Mas, neste momento, o que estamos detectando são irregularidades. Já estamos tomando a primeira medida, que é suspender o benefício. Isso é o básico.

Semana passada, o governo federal já tinha anunciado o bloqueio de benefícios de 13 mil famílias identificadas como doadoras de campanha nas eleições deste ano. Elas terão a chance de provar que não cometeram irregularidades. Esses bloqueios não estão incluídos na conta dos 654,4 mil anunciados ontem.

O pente-fino foi anunciado no início do governo do presidente Michel Temer, que assumiu em maio, quando a ex-presidente Dilma Rousseff foi afastada do cargo. Depois, o foco da fiscalização mudou, passando da busca de beneficiários que mentem a renda para a gestão do programa. Isso ocorreu após um homem de Santo Cristo (RS) ter verificado que seu nome constava na lista de beneficiários, mesmo não tendo solicitado sua inscrição no programa.

Ele aparecia no sistema do Bolsa Família como se não tivesse qualquer fonte de sustento, o que não era verdade. Um cartão havia sido emitido em seu nome, tendo sido feitos dois saques. O benefício foi bloqueado. Em agosto, quando foram anunciados os primeiros resultados do pente-fino, o governo apontou a existência de funcionários das prefeituras responsáveis por incluir excessivamente beneficiários no programa, numa média muito acima do normal.

 

“Para as que foram canceladas é bem pouco provável que (as famílias) tenham uma explicação consistente a dar”

Osmar Terra

Ministro do Desenvolvimento Social e Agrário

 

 

O globo, n. 30409, 08/11/2016. País, p. 3.