O Estado de São Paulo, n. 44948, 09/11/2016. Internacional, p. A14

Eleito terá desafio de completar a obra de Obama

Continuidade no trabalho desenvolvido na saúde e na proteção do clima, entre outras áreas, é o que se espera do novo presidente

 

WASHINGTON – Barack Obama proferiu seu discurso de vitória há oito anos, no Grant Park de Chicago, falando de “um novo amanhecer” na história americana e prometendo à multidão entusiasmada: “nós, como povo, chegaremos lá”. “Diante do que realizamos neste dia, nesta eleição, neste momento decisivo, a mudança chega à América”, prometeu o então recém-eleito.

Mas, no momento em que o país se prepara para escolher o sucessor de Obama, a corajosa agenda política prometida por ele ficou incompleta. O que Obama descobriu – e seu sucessor também aprenderá – é que cada presidência dura apenas um breve momento no tempo.

A lei sobre o seguro-saúde de Obama beneficiou milhões de pessoas, mas hoje são fortes os apelos para uma ampla reformulação da lei. A economia está nitidamente melhor, mas a renda e o crescimento continuam fracos.

A revisão das leis sobre imigração que ele pretendia está presa num limbo legal, como continuam no papel normas mais rígidas com relação ao clima. Hoje, menos americanos combatem em guerras, mas o Estado Islâmico surgiu como a nova ameaça. As tensões partidárias e raciais se intensificaram.

“Há muita coisa inacabada”, disse Tom Daschle, ex-líder do Senado, democrata, da Dakota do Sul, que apoia Obama. “Há uma satisfação em saber que ele mudou o panorama de modo profundo. Mas também frustração quando sabemos o que poderia ter sido feito.”

Obama reconheceu a transitoriedade de seu mandato quando discursou no Grant Park. “Nossa escalada será íngreme”, afirmou. “Podemos não chegar lá em um ano, ou mesmo em um mandato.” E mais recentemente, admitiu que seu legado seria progressivo. Em um artigo para a Economist, ele descreveu a presidência como “uma corrida de revezamento, exigindo que cada um de nós faça sua parte para levar o país mais perto das suas grandes aspirações”.

Jen Osaki, diretor de comunicações da Casa Branca, disse que Obama sempre entendeu que era somente parte de uma sequência. “Ele reconhece que aquele para quem passará o bastão produzirá um enorme impacto se tomar como base os avanços que ele conseguiu.”

Assessores da Casa Branca salientam o que consideram pontos fortes desses avanços: ele tirou o país de profunda recessão econômica, resgatou o setor automotivo, ampliou o seguro saúde para 20 milhões de pessoas, pressionou o mundo a enfrentar a mudança climática, reduziu o papel de combatente dos EUA em duas guerras. Mas, para um presidente que assumiu prometendo mudanças arrasadoras, a eleição é um lembrete de que caberá a outro completá-las.

A assistência à saúde é o mais importante exemplo. A aprovação do Affordable Care Act (sobre o seguro-saúde), em 2010, mudou drasticamente os mercados de seguros nos EUA, melhorando o acesso aos cuidados médicos. Mas mesmo os democratas concordam que muito mais precisa ser feito para melhorar os custos e a qualidade.

Para Tom Daschle, o fato de o programa não ter sido concluído se deve em parte à obstrução republicana e em parte foi resultado de atrasos que sempre ocorrem quando se reformula um programa social tão grande.

A questão da mudança climática também é um trabalho em curso. Internacionalmente, Obama conseguiu, com sucesso, pressionar os líderes mundiais a adotar medidas mais agressivas contra o aquecimento global. Internamente, exigiu normas mais rígidas sobre combustível para carros e impôs novos regulamentos para usinas elétricas movidas a carvão.

Mas os acordos internacionais firmados por insistência de Obama se desenvolverão durante décadas. Caberá aos futuros presidentes a adoção de medidas políticas de combate ao aquecimento global.

“Obama abriu caminho para efetiva proteção do clima no campo global e doméstico”, disse Paul Bledsoe, assessor para o clima no governo de Bill Clinton. “Mas grande parte do trabalho pesado será realizado por seu sucessor, especialmente no âmbito da política doméstica.” / THE NEW YORK TIME

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No Harlem, já há saudade do líder

Eleitores negros querem impedir retrocessos

Por: Lúcia Guimarães

 

A manhã gloriosa do outono nova-iorquino derrubou mais uma desculpa de quem quisesse ficar em casa e exercer seu direito de não votar ontem. As filas começaram a partir das 6 horas em pontos de votação do Central Harlem, onde vivem mais de 120 mil pessoas, e foram diminuindo à medida que eleitores desapareciam na estação do metrô a caminho do trabalho.

O grande Harlem tem pelo menos o triplo de habitantes da área central. Mas é o Central Harlem, a região histórica, o berço da Renascença cultural negra das décadas de 20 e 30, que levou ao mundo a arte de nomes como o compositor Duke Ellington, o dramaturgo e poeta Langston Hughes e o dançarino de sapateado Bill “Bojangles” Robinson.

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Análise: Planalto, com uma carta para Hillary e outra para Trump

Por: Eliane Cantanhêde

 

Apesar de torcer pela candidata democrata Hillary Clinton, até mesmo em manifestações públicas do chanceler José Serra, o governo brasileiro teve um cuidado especial diante das eleições americanas: o Planalto deixou prontas duas cartas de cumprimentos, uma para o caso de vitória de Hillary, outra para o de vitória do republicano Donald Trump.

Pode-se pensar que esse é um cuidado rotineiro, mas a redação das duas cartas pelos diplomatas que assessoram o presidente Michel Temer revela claramente que no Brasil, como no restante do mundo e nos próprios Estados Unidos, ainda havia dúvidas sobre quem ganharia a eleição mais tensa, agressiva e peculiar da maior potência mundial – e em meio a um cuidadoso processo de reaproximação entre Brasília e Washington, após o distanciamento dos anos Dilma Rousseff.

A preferência do governo por Hillary estendia-se ao Congresso, onde PMDB, PT e PSDB vivem às turras, mas se unem na ojeriza a Trump. Essa reação poderia render longas teses, mas fica devidamente explicada com uma única frase de importante diplomata brasileiro da ativa: “Hillary não é perfeita, mas é previsível. Trump é totalmente imprevisível.”

E por que Hillary não é “perfeita”? Porque ela, por exemplo, poderia ser “pior” do que o do atual presidente Barack Obama em duas questões ao menos: tende a endurecer as posições dos EUA quanto ao conflito no Oriente Médio e ter uma relação conflituosa com Vladimir Putin, presidente da Rússia. Ela, porém, defende teses muito mais aceitáveis não apenas para o governo, mas para a própria sociedade brasileira, em temas como costumes, minorias e América Latina.

Ao contrário de Hillary, que tem longa atuação política e foi secretária de Estado de Obama, Trump é um arrivista na política interna e na política externa. A lista de temores do Planalto e da diplomacia brasileira é grande: ele poderia fechar os EUA ao restante do mundo e à América Latina, criar efetivamente um muro na fronteira com o México, deportar massas de muçulmanos, desfazer o endosso a protocolos ambientais importantes.

Em entrevista à Globo News, em 5 de maio, Serra admitiu que não é usual o Itamaraty se manifestar sobre eleições de outro país, mas foi exatamente o que ele fez, num estilo de político, que ele é, não de diplomata, que nunca foi. “Espero que a Hillary ganhe as eleições. O Trump é um risco para o mundo”, disse. Ele manifestou o temor com a “volta ou emergência de um nacionalismo, de um isolacionismo que nos faria voltar aos anos 30, que tiveram um desfecho trágico que foi a 2.ª Guerra”.

Ao Estado, no dia 22 de maio, ele foi provocativo. Diante da pergunta sobre a possibilidade de a vitória de Trump atrapalhar a reaproximação com Washington, respondeu: “Prefiro não acreditar nisso”. Ao Correio Braziliense, em 31 de julho, foi demolidor: “Considero a hipótese de Trump um pesadelo. Todos que querem o bem do mundo devem apoiar a Hillary”.