Investigações ameaçadas

André de Souza e Manoel Ventura

13/11/2016

 

 

José Fortunati (PDT) quer um 2017 sabático. Ao passar o comando da Capital para Nelson Marchezan Júnior (PSDB) em 1º de janeiro, o prefeito não pretende voltar a exercer cargos públicos nem partidários tão cedo. Seu objetivo é estudar Direito, aperfeiçoar o inglês e dar aulas de gestão pública. Para 2018, almeja uma candidatura ao Senado. Seu plano imediato é envergar a camisa 9 da Associação Master dos Amigos da Vila Nova, time amador no qual costumava jogar uma pelada aos finais de semana. Canhoto, o prefeito diz que tinha chute potente, mas agora está mais para “centroavante aipim”, que passa o jogo fincado na área esperando cruzamentos.

 

– Fui a um jogo festivo do Grêmio e tomei uma entrada do Dinho (ex-volante gremista e vereador) que liquidou meu tornozelo. Agora só jogo parado – diverte-se.


Fortunati recebeu Zero Hora em seu gabinete na manhã de quarta-feira. Em uma hora e meia de conversa, fez balanço de sua gestão. Não ignora os problemas, mas encontra justificativas para tudo, da lentidão nas obras à insegurança da Capital, do risco de atraso nos salários à avaliação negativa de sua administração. Está convicto de que, com o passar dos anos, os porto-alegrenses vão reconhecer seus feitos, principalmente após a conclusão de todas as obras de mobilidade urbana. E tem o um desejo especial a respeito do próprio legado:


– Gostaria de ser lembrado como o prefeito que pensou a cidade para as pessoas.


Aos 61 anos, Fortunati já começou a recolher seus pertences pessoais espalhados pelo Paço Municipal. Numa sala contígua ao gabinete, quadros e fotos foram retirados das paredes, e ele tem na ponta da língua quanto tempo ainda falta para concluir seu mandato. Na quarta-feira, eram 53 dias – período exíguo se comparado aos 2.469 dias que completará à frente da Capital, o que o torna o mais longevo prefeito de Porto Alegre eleito democraticamente pela população.


A contagem regressiva não representa sofreguidão em deixar o cargo. Fortunati quer apenas fazer cada coisa ao seu tempo. Tanto que se recusou a posar para fotografia descendo as escadarias da prefeitura. Seria o caminho inverso no qual foi flagrado no dia da posse no segundo mandato, em 1º de janeiro de 2013. A imagem estampou a capa do jornal do dia seguinte e Fortunati mandou emoldurá-la. Hoje, é um dos quadros prestes a serem encaixotados.


– Não queiram antecipar as coisas. Voltem aqui na última semana de governo que faço essa foto – respondeu.

Confira os principais trechos da entrevista.


O senhor tem pouco mais de 50 dias de mandato. Que cidade vai entregar aos porto-alegrenses?
Saio de cabeça erguida e com a consciência muito tranquila. Avançamos muito em todas as áreas, especialmente nas políticas públicas. A prestação de contas que estamos entregando é clara comprovação de que isso não é discurso. Avançamos inclusive num tema que até hoje não é compreendido, que são as obras. Tivemos a ousadia de tirar as grandes obras da gaveta.


Essa é uma mágoa que o senhor guarda, até pelas críticas severas que sofreu na campanha?
Duas críticas foram fortes: a segurança e as obras. Há clara incompreensão sobre o papel do prefeito. Entendo o medo, a cidade está insegura, mas debitaram isso na conta do prefeito. Tomamos muitas iniciativas para aumentar a segurança da população: 1,2 mil câmeras, iluminação de ruas, parques e praças. Durante um ano insisti para que a Força Nacional viesse a Porto Alegre. E qual foi o principal mote da campanha de Nelson Marchezan (prefeito eleito)? Segurança. O segundo tema foram as obras. Elas não estão paradas, com exceção da trincheira da Plínio Brasil Milano, por decisão judicial.


Mas os prazos exorbitaram muito.

Pelo seu histórico. Na Avenida Tronco, remanejamos 1,5 mil famílias. Na hora de construir as casas, tivemos duas licitações desertas. Entre uma licitação e outra, se passou um ano. A obra está sendo feita, com macrodrenagem, corredor de ônibus, pistas. Quando íamos começar a trincheira da Anita Garibaldi, uma obra pequena, manifestantes acamparam no local por oito meses. Depois apareceu uma rocha, foi um ano de discussão junto ao Tribunal de Contas do Estado sobre o método destrutivo sem danificar os prédios vizinhos. Aí, o governo federal ficou um ano sem repassar recursos, a empreiteira quebrou. Tem tudo isso, mas o importante é que a obra está lá, entregue à cidade.

Como resolver imprevistos? Que lição tirou ao passar por essas dificuldades para concluir uma obra?
Não existe solução mágica. Este é um país no qual quem vale é quem fiscaliza, não quem faz. A cada uma das obras da Copa, tínhamos 14 instituições nos fiscalizando. Num determinado momento, estávamos numa crise enorme, todo mundo nos fiscalizando, e pedi para fazerem uma conta do número de engenheiros e arquitetos que os órgãos de controle tinham em relação à prefeitura. Era 10 vezes mais. Não sou contra fiscalização, mas estamos exagerando. Com isso, os prefeitos pensam que não vale a pena fazer. Muitos que estão assumindo vão fazer o feijão com arroz, e quem perde com isso é a cidade. Me orgulho: são 15 grandes obras que estão sendo feitas. Algumas não ficaram prontas ainda, mas as tirei da gaveta.


Qual o legado que o senhor acredita ter deixado?

A cidade ficou mais moderna, mais aprazível. Reformulamos praças, parques. Estamos deixando uma parte da orla pronta, inclusive vamos fazer lá a festa de Réveillon. Do ponto de vista dos serviços, a saúde melhorou muito, e os números são inquestionáveis. Na assistência social, não se vê mais crianças nas sinaleiras. O problema é que, com a crise, aumentou o número de pessoas em situação de rua, muitas vindas do Interior. Também somos reconhecidos pelo modelo de gestão e pela transparência. O legado é positivo. Tem problemas, óbvio, mas há claros avanços.


O senhor falou no que considera conquistas, mas a avaliação da sua gestão é negativa. Por que o porto-alegrense não aprova a sua administração?

É preciso ressaltar que a avaliação da prefeitura é uma, e a minha é outra. Em todas as pesquisas da equipe do Marchezan, minha avaliação positiva era quase o dobro da referente à prefeitura. De qualquer forma, todos os gestores foram abatidos pela grande crise nacional. Tem a crise da política, que leva de roldão todos os homens públicos, estejam envolvidos ou não em denúncias, e tem também a crise econômica, com corte de repasses dos governos federal e estadual. Isso desagua na prefeitura. O gestor Fortunati paga o preço desse pacote, mas não me abateu somente. Os atuais prefeitos de Rio, São Paulo, Belo Horizonte, Curitiba e Florianópolis não foram para o segundo turno ou não levaram seus candidatos até lá. Tenho a convicção de que, passado um tempo e com um olhar mais tranquilo, a minha avaliação será outra.


A que o senhor atribui a derrota do seu vice, Sebastião Melo?

A essa conjuntura geral. Acabei de citar casos nacionais, mas aqui no Rio Grande do Sul também houve fenômeno semelhante. Em Canoas e Caxias do Sul, prefeitos bem avaliados também não conseguiram fazer o seu sucessor. Houve sentimento de renovação muito forte e descrédito geral na política. Espero que o pessoal de Brasília se dê conta que é necessário uma reforma política, uma reforma eleitoral, e um comportamento diferenciado em relação à coisa pública.


O senhor não foi uma presença assídua na campanha. Há quem diga que também está ausente no dia a dia da cidade. O senhor anda sumido?

Na cidade, não concordo. Todos os dias às 8h estou aqui na prefeitura, antes dos meus assessores. Não tenho um estilo midiático. Faço as coisas no devido tempo, estou sempre envolvido, mas não faço as coisas para aparecer. Na eleição, cumpri o que foi determinado pela coordenação de campanha. Ponto. Participei das reuniões de coordenação, gravei quando fui chamado, mas foi uma decisão que nunca questionei.


Não lhe incomodou a sensação de que talvez o senhor pudesse atrapalhar?

Não. Todas as decisões foram tomadas em conjunto. Falaram em mostrar as grandes figuras públicas, e achei que não era o momento, que era melhor mostrar as conquistas da cidade.


O senhor diz que deixa uma cidade mais aprazível. Mas o viaduto da Borges de Medeiros se transformou em condomínio de moradores de rua. O Largo Glênio Peres, aos finais de semana, se tornou estacionamento. À noite, o Centro é dominado por traficantes, bandidos e inferninhos. Como resolver isso?

No Largo Glênio Peres, há liberação do estacionamento para os frequentadores do Mercado Público. Se não fomentarmos o Mercado, vai acabar fechando. A Brigada Militar se nega a reeditar convênio que tínhamos para que os policiais acompanhassem as ações da prefeitura. O problema no viaduto da Borges é o narcotráfico. Está virando cracolândia. Não conseguimos atuar porque não temos o anteparo da Brigada. Equipes de abordagem social vão ali e são ameaçadas. O mesmo ocorre com quem fiscaliza os vendedores de frutas, o pessoal vai autuar e é agredido. Precisamos da Brigada Militar.

O prefeito eleito disse que, quando terminar o mandato, a segurança não vai ser mais pauta em Porto Alegre. Isso é possível?

Impossível. Vivemos um processo de insegurança muito grande. O narcotráfico está muito mais organizado, não tem limites. Eles executam, esquartejam, sequestram, somem com as pessoas e se matam entre si. Não será com passe de mágica que isso vai acabar.


Marchezan também falou em privatizar a Carris se continuar dando prejuízo. É possível torná-la rentável?

No atual sistema, é impossível. Quase 35% dos passageiros não pagam passagem. Neste momento, todas as empresas estão dando prejuízo.


O valor desembolsado pela prefeitura com juros, encargos e amortização da dívida vem aumentando, principalmente de 2015 para cá, com o fim da carência em contratos de financiamento das obras da Copa. O futuro prefeito precisa se preocupar com isso?

Não. Podemos ter base de endividamento de mais de 100% (da receita corrente líquida), temos hoje 16%. A cidade é exemplar do ponto de vista dos desembolsos, tanto que nunca tive problemas ao buscar financiamento. Estamos deixando dois grandes projetos ao próximo governo. Em um deles, são US$ 92 milhões para a orla do Guaíba, revitalização da Rua da Praia, o quadrilátero do Centro aqui na Rua Uruguai, pavimentação de ruas, obras do Orçamento Participativo e modernização da Procempa (Companhia de Processamento de Dados do Município). O outro prevê US$ 85 milhões para a educação, com modernização de escolas e qualificação de professores. Então, são US$ 177 milhões que vão ficar de mão beijada para o próximo prefeito.


O senhor disse que vai antecipar o IPTU, alienar imóveis e leiloar índices construtivos para conseguir fechar as contas no fim do ano. Isso significa que o seu sucessor assumirá a prefeitura sem contas em atraso, mas com os cofres raspados?

Se tivermos êxito nessa antecipação do IPTU, vamos fechar no zero a zero. A conta que estou fazendo é que vamos conseguir pagar os salários, o 13º e também saldar os débitos de R$ 40 milhões com os fornecedores.


Não vai ter atraso dos salários?

Depende dessa arrecadação. A garantia de que não vai haver atraso não tenho. Tenho expectativa em cima de ações concretas que estamos fazendo. Se tudo der certo, não tem atraso.


Como estão as investigações no Departamento de Esgotos Pluviais (DEP)? O senhor entrega o mandato com todas as auditorias concluídas?

Todas as investigações que estamos fazendo no DEP são acompanhadas pelo Ministério Público e pelo Tribunal de Contas. Não há uma decisão sem total transparência. Vamos entregar o DEP sanado e com as punições que serão tomadas de acordo com o rito legal. Da mesma forma, fiz intervenção na Fasc (Fundação de Assistência Social e Cidadania). Sempre que recebi denúncia, nunca deixei de operar.

Os escândalos no DEP, na Fasc e na Procempa foram protagonizados por PP e PTB, partidos que estão no governo, mas fizeram uma campanha de oposição ao senhor. Por que não tirou essas legendas da gestão?

Nas denúncias, quem manchou o meu governo foi afastado. Ponto. No final do ano passado, me reuni com todos os parceiros e disse que não sabia quem seriam os candidatos da base, mas que respeitaria a todos até 31 de dezembro de 2016. Cumpri a minha parte, se os outros não cumpriram, não me cabe fazer retaliação. O que fiz foi telefonar para os presidentes quando alguns militantes passaram dos limites, mas foram poucas vezes.

 

 

O globo, n. 30414, 13/11/2016. País, p. 03.