Auxílio é o que não falta

Elenilce Bottari, Rafael Galdo e Selma Schmidt

13/11/2016

 

 

 

Enquanto o estado tenta aprovar, em meio à calamidade financeira, um pacote de austeridade que extingue programas sociais e atinge salários, Judiciário, Ministério Público, Legislativo, Tribunal de Contas — eo próprio Executivo — mantêm intocados benefícios que, na proposta orçamentária para 2017, deverão ultrapassar R$ 2,1 bilhões. O dinheiro será gasto com auxílios para moradia, combustível, educação e transporte, entre outros, que estão respaldados por lei e que favorecem da base dos servidores aos deputados, passando por procuradores e desembargadores. O valor equivale a 35% dos R$ 5,9 bilhões que o governo quer arrecadar com o aumento da alíquota e a criação de uma contribuição previdenciária suplementar para o funcionalismo. É ainda 28 vezes maior do que os R$ 74,1 milhões que o estado espera economizar com a extinção do aluguel social. A conta é grande e, ao mesmo tempo, discreta: prova disso é que a Assembleia Legislativa (Alerj) não informa o total de sua despesa com esses benefícios.

É certo que a ajuda não chega a ser pomposa para todos. Assim como as remunerações variam de acordo com os cargos, os benefícios se diversificam conforme o nível de poder. Nessa matemática seletiva, um professor da rede estadual tem R$ 158 mensais de auxílio-alimentação (R$ 7,18 por dia útil). Um funcionário do Tribunal de Justiça recebe bem mais: R$ 1.050 por mês (R$ 47,72 diários). E, se for um magistrado, o benefício chega a R$ 1.825 (R$ 82,95 por dia).

Uma única juíza da Região dos Lagos recebeu, em agosto, benefícios que resultaram num acréscimo de R$ 11,6 mil em seu salário bruto, de aproximadamente R$ 28 mil. Ao todo, 854 magistrados e 900 funcionários do Ministério Público têm direito a R$ 4.377,73 mensais de auxíliomoradia. O benefício também é concedido — em valor menor, R$ 3.189,85 — a 11 deputados que moram a mais de 150 quilômetros da capital do estado. E todos os 70 parlamentares fluminenses contam com um cartão para gastar R$ 2.970 em combustível por mês. Eles ainda têm, em tempos de email, uma cota mensal de mil selos para envio de correspondências.

— Isso é incoerente. O estado tenta fazer ajustes e não mexe nos auxílios? Se precisamos sacrificar, vamos sacrificar todo mundo, não só aqueles que eventualmente têm um rendimento menor. Alguns desses auxílios são, na prática, complementos salariais, como o caso do auxílio-moradia — diz o especialista em direito previdenciário Theodoro Agostinho.

O advogado Carlos Jund, da Federação das Associações e dos Sindicatos dos Servidores Públicos (Fasp), também vê no pagamento de benefícios uma forma de salário indireto:

— Os benefícios variam de categoria para categoria. São auxílios de natureza indenizatória que não entram no cálculo do teto salarial. Há categorias que precisam recebê-los, o objetivo é evitar que o setor público perca profissionais para o setor privado. O que contesto é a camuflagem do sistema de pagamentos.

MP E TJ: AJUDA DE R$ 1,1 BILHÃO

A previsão de gastos com benefícios para 2017 está embutida na proposta orçamentária do estado, que ainda não foi aprovada e que deverá ser revista após a votação do pacote de austeridade do governo. Mas há poucos detalhes sobre auxílios no projeto de lei enviado à Alerj. Para levantá-los, repórteres do GLOBO precisaram vasculhar os sites das instituições que os concedem e buscar dados junto aos poderes.

As informações disponíveis revelam que o Ministério Público e o Tribunal de Justiça são generosos: no ano que vem, planejam destinar ao pagamento de auxílios 28,7% e 26,7%, respectivamente, de suas despesas com pessoal e encargos sociais. O MP estima gastar R$ 293 milhões em benefícios, ou 18,76% de seu orçamento de R$ 1,561 bilhão.

Pela proposta do TJ, dos R$ 4,66 bilhões de despesas previstas para o próximo ano, R$ 808,65 milhões (17,3% do total) são para assegurar benefícios. Desse valor, R$ 153 milhões têm como fonte o tesouro estadual. Outros R$ 655,65 milhões sairiam da receita própria — remuneração paga pelo Banco do Brasil para ter exclusividade na administração dos depósitos judiciais (0,27% do saldo médio mensal).

Só em auxílios para magistrados, a despesa prevista é de R$ 137,3 milhões. Juízes e desembargadores, que não ganham menos de R$ 27 mil brutos, recebem, em geral, mais benefícios que os servidores lotados no TJ. Em média, cada um ganhou, na folha de agosto, cerca de R$ 7,8 mil brutos em ajuda de custo para transporte e mudança, auxílio-alimentação, moradia e educação, além de indenizações de transporte e por dias de compensação de plantão não usufruídos (repouso remunerado).

NO EXECUTIVO, BENEFÍCIOS MINGUADOS

Os servidores do TJ têm situação mais confortável que a de outros funcionários do estado. Mesmo assim, reina o descontentamento. Há dez anos como técnica judiciária, Marluce do Nascimento diz que, apesar dos auxílios, é difícil sobreviver com o que ganha.

— Recebemos outubro em três parcelas, por conta dos arrestos nos cofres do estado. Estamos sem reajuste há dois anos. Querem congelar nossos salários por mais dois. Também acumulamos perdas com a inflação — reclama Marluce, que compara seus benefícios aos dos magistrados: — Tudo bem que tenham salários superiores ao nosso, mas eles ganham mais auxílios.

Em valores absolutos, é o Executivo que paga mais benefícios: estão previstos R$ 961 milhões em auxílios para 2017. Mas trata-se também do poder com maior número de servidores: 467.516, somando ativos, inativos e pensionistas. Em geral, eles recebem valores bem mais baixos que os do TJ. Dos órgãos da administração direta do governo, o que oferece o maior auxílio-alimentação é a Polícia Civil, que repassa R$ 263,89 (R$ 12 por dia útil) a cada funcionário.

Agente do Departamento Geral de Ações Sócio-Educativas (Degase), Eduardo Pereira Neto conta que os auxílios que recebe são tão pequenos que passam até despercebidos no contracheque.

— Trabalhamos sob constante risco e não temos sequer adicional de insalubridade. Lidamos com jovens que estupram e matam — reclama Eduardo, que mora com a mulher e dois enteados em São Gonçalo e que, há dois anos no Degase, recebe R$ 2.500 líquidos. — Para nossa salvação, minha esposa trabalha como gerente num posto de gasolina.

Há discrepâncias dentro do Executivo. Dos 33 órgãos da administração direta, apenas as secretarias de Segurança, Saúde, Educação e Administração Penitenciária, além de Degase, polícias Civil e Militar e Corpo de Bombeiros têm direito ao auxílio-alimentação. O benefício é concedido a quase todas as autarquias, fundações e empresas do estado.

Na Alerj, a ajuda para a alimentação é de R$ 40 por dia útil. Funcionários com filho de até 24 anos matriculado numa escola ou faculdade, pública ou privada, têm direito a uma bolsa de reforço escolar de, no mínimo, R$ 1.052,00 (valor bruto). De janeiro a agosto, só esse benefício custou R$ 34,7 milhões à Casa.

Assim como a Alerj, a Defensoria Pública não informou os gastos previstos com auxílios em 2017. Já o TCE estipula uma despesa de R$ 62,7 milhões com benefícios no próximo ano.

 

 

O globo, n. 30414, 13/11/2016. País, p. 09.