Ministro condena restrição à TV Justiça

Renata Mariz e Carolina Brígina

15/11/2016

 

 

Para Marco Aurélio, projeto que proíbe transmissão de julgamentos do STF é forma de ‘legislar em causa própria’

 

-BRASÍLIA- Em meio a uma agenda legislativa apontada como retaliação do Congresso a investigações de corrupção, avança na Câmara um projeto de lei que proíbe a transmissão, pela TV Justiça, dos julgamentos do Supremo Tribunal Federal (STF) e demais Cortes superiores de ações penais e cíveis. Aprovado por unanimidade na semana passada na Comissão de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática, o texto veda a veiculação das sessões ao vivo ou gravadas, na íntegra ou editadas. Na prática, só ficariam liberadas as transmissões de sessões sobre questões constitucionais.

A aprovação na comissão provocou polêmica. O ministro Marco Aurélio Mello, que inaugurou a TV Justiça em 2002, quando era presidente do STF, ficou indignado com o projeto:

— É inimaginável essa proibição, considerado o julgamento de ações penais que são propostas contra parlamentares. Essa forma de legislar em causa própria é excomungável. A TV Justiça é um controle externo do STF — declarou Marco Aurélio.

Se a regra estivesse em vigor, não seriam exibidos julgamentos como o do mensalão. Outros que ainda serão enfrentados no STF, como ações relacionadas à Lava-Jato, envolvendo políticos com foro privilegiado, também ficarão proibidos. Depois de aprovado, o projeto de lei foi encaminhado à Comissão de Constituição e Justiça, de onde seguirá, caso não seja rejeitado, direto para o Senado, por ter caráter terminativo, ou seja, sem necessidade da apreciação do plenário da Câmara.

Para o líder do governo, André Moura (PSC-CE), qualquer medida de restrição da exibição de julgamentos representa um retrocesso numa prática já consolidada da democracia brasileira. Pauderney Avelino (AM), líder do DEM, disse que se posicionará de forma contrária à matéria, porque ela representa uma “perda” grande para o interesse público.

— Se o caso chegou ao pleno do Supremo, deixou de ser privado. A regra é a transparência — disse Pauderney.

Para Ricardo Pedreira, diretor-executivo da Associação Nacional de Jornais (ANJ), o projeto é “equivocado” porque “cerceia o direito das pessoas à informação”. Ele defendeu que o respeito à honra dos envolvidos nos processos seja sempre garantido, mas argumentou que a proibição não se justifica. Para Pedreira, o rito rápido de tramitação prejudica o debate:

— Não conheço as regras regimentais da Câmara, mas me parece que um projeto desse não deveria tramitar tão rapidamente, sem análise do plenário.

João Ricardo Costa, presidente da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), classificou o projeto de lei de “retrocesso” e defendeu que a transmissão dos julgamentos materializa as regras de transparência e publicidade que devem pautar a Justiça.

— Os processos são públicos, mas é preciso garantir o acesso a eles. A transmissão é uma das formas de acesso. Esse projeto vai tolher a sociedade de acompanhar ações importantes, como mensalão e Lava-Jato — afirmou Costa.

No entender do juiz Marlon Reis, integrante do Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral (MCCE), o projeto de lei é “grosseiramente inconstitucional”, porque impede que o cidadão tenha acesso a julgamentos de processos públicos, como os penais. Ele afirmou que muitos parlamentares são interessados na não divulgação dos julgamentos:

— O que está por trás disso não é o temor da espetacularização, mas o temor da publicidade. Por isso, a sociedade brasileira deve ficar atenta, porque movimentos podem acontecer no sentido de aprovar um projeto como esse. É muito simbólico que esse debate venha à tona no momento em que se tem mais parlamentares alvos de processos criminais.

 

PROJETO PREVÊ BLOQUEIO PARA TV

A proposta ainda abre brecha para uma espécie de censura prévia autorizada pela Justiça, ao prever que as geradoras locais de TV restrinjam os sinais, mediante notificação judicial, por “justificado motivo”. Essa razão justificada é descrita como “a situação em que a pessoa se sinta prejudicada pela simples transmissão de fato, ato, acontecimento, insinuação, denúncia ou decisão de qualquer natureza, inclusive judiciária não publicada e não transitada em julgado, que envolva o seu nome e sua reputação”.

Embora se refira especificamente à TV Justiça, o projeto de lei impede a veiculação das sessões por outras emissoras, uma vez que o sinal é repassado pelo canal oficial do STF, segundo afirmou o autor do texto, deputado Vicente Cândido (PT-SP), ao GLOBO. O parlamentar defende a proposta argumentando que a transmissão dos julgamentos expõe a vida de pessoas e famílias que nem foram condenadas de forma definitiva, violando direitos constitucionais:

— O projeto vai na linha do que o mundo faz, de preservar os direitos das pessoas, que acabam sofrendo duas penas: a condenação, caso ocorra ao final do processo, e a execração pública. Acabar com as transmissões não tem nada a ver com diminuição de transparência. O voto é público, mas o espetáculo que se faz tem de ser coibido.

 

 

O globo, n. 30416, 15/11/2016. País, p. 03.