O globo, n. 30421, 20/11/2016. País, p. 9

Filho de Jango conta em livro o gosto amargo do exílio

João Vicente fala do desentendimento do pai com Vinicius de Moraes à ausência sentida de Pelé, em encontro com jogadores

Por: Evandro Éboli

 

No exílio, em Montevidéu, o ex-presidente João Goulart recebeu um grupo de jogadores da seleção brasileira de futebol, em 1967, que estava no país para um jogo contra a seleção uruguaia. Jango sentiu a ausência de Pelé entre os atletas. O volante Piazza contou então a Jango que o craque do time preferiu não ir para evitar arestas com o governo militar brasileiro. O episódio foi testemunhado por João Vicente Goulart, então com 10 anos, que relata agora em livro como era o dia a dia do pai nos 12 anos de exílio, desde que foi deposto da Presidência da República, em 1964, até a sua morte, em dezembro de 1976.
João Vicente se lembra de trechos literais de conversas com o pai — como a premonição de que jamais retornaria vivo ao Brasil —, narra minúcias de encontros com políticos e com personalidades da cultura, como Glauber Rocha e a cantora Maysa — com quem acabou a noite dançando numa discoteca na capital uruguaia. Também toca em assuntos particulares — como a quase separação de Jango e Maria Thereza Goulart e de uma relação extraconjugal do pai — e faz uma defesa do legado do ex-presidente. O livro “Jango e eu, memórias de um exílio sem volta” — Editora Civilização Brasileira — tem 350 páginas e será lançado no início de dezembro, quando a morte de João Goulart completa 40 anos.

João Vicente compra algumas brigas no texto, como a acusação da esquerda de que seu pai deveria ter resistido ao golpe e enfrentado os militares. É um assunto que vai e volta no livro.

— Não houve resistência porque Jango preferiu evitar derramamento de sangue entre seus conterrâneos. Esse é um de seus grandes méritos, pois, se tivesse resistido, haveria uma luta prolongada e muito provavelmente o país seria dividido em Norte e Sul — escreve o filho de Jango.

Mas o destaque dessas memórias são as passagens da pouca conhecida rotina de Jango no exílio — a maior parte passada no Uruguai, onde adquiriu mais terras, abriu outros negócios, e, além de carros, tinha avião. Chegou a arrendar um hotel com outro amigo, o Alhambra, na Cidade Velha de Montevidéu, para receber exilados brasileiros. Eram constantes suas viagens à Europa, em especial à França, onde também ia tratar de problema no coração, encontrava-se com brasileiros, exilados como ele, como seu Paulo Freire, que fora ministro da Educação em sua gestão.

— Paulo, você é muito mais perseguido no Brasil do que eu — disse Jango no encontro, com João Vicente a tiracolo.

Com outro ministro seu, Celso Furtado, do Planejamento, Jango saiu uma noite para jantar. A conta foi alta, salgada. O preço do vinho que tomaram era exorbitante.

— Com esse planejamento tínhamos que cair mesmo, não é Celso? — brincou Jango, que pagou a conta com cheque de viagem.

João Vicente revela alguns diálogos pessoais com Jango:

—Mas pai, tu tens algum filho antes do casamento? Tu eras tão namorador que isso é possível?"

— Olha, meu filho, acho que tenho uma filha moça que não conheço — respondeu Jango.

João Vicente conta que, com 16 anos, foi preso na escola com outros colegas. Os estudantes foram levados para uma unidade militar em Montevidéu. Rasparam seu cabelo, o submeteram a tortura, o chamavam de Janguinho e o interrogaram com capuz. Foram três dias de prisão. Ao pegar o filho, Jango desabafou:

— Fizeram essa violência para me atingir. Não vão mais te humilhar. Não vai voltar à escola com a cabeça raspada. Querem que todos os vejam assim para mostrar o que podem fazer.

Jango gostava de uísque, frequentava cassino e shows de brasileiros. Num desses, levou duas garrafas de uísque Old Parr para se encontrar com Vinicius de Moraes, que fazia uma apresentação ao lado de Toquinho num desses cassinos. Mas a conversa não foi boa. Ele perguntou a Vinicius, lá pelas tantas, qual a razão de não compor letras de protesto. Vinicius não gostou da pergunta. — Sou um poeta do amor, Jango. A amizade azedou. E ainda sobrou meia garrafa de uísque.