Aborto em debate

Manoel Ventura e Evandro Éboli

01/12/2016

 

 

Em resposta ao STF, Câmara cria comissão para endurecer legislação sobre o tema

 

-BRASÍLIA E RIO- Horas depois de três ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) decidirem, anteontem, soltar cinco médicos e funcionários, presos uma clínica clandestina, por entenderem que aborto até o terceiro mês de gestação não é crime, a Câmara dos Deputados reagiu e trabalha para derrubar qualquer brecha jurídica que permita a descriminalização do aborto. Ainda na madrugada de ontem, o presidente da Casa, Rodrigo Maia (DEM-RJ), criou uma comissão especial para analisar uma emenda constitucional e tentar reverter a decisão do tribunal, além de endurecer as regras sobre a interrupção voluntária da gravidez.

Deputados se revezaram no microfone durante a votação do pacote anticorrupção de madrugada cobrando uma resposta de Maia ao Supremo. Em campanha pela reeleição à Presidência da Câmara, Maia cedeu às pressões, principalmente de deputados ligados à bancadas religiosas, e no mesmo dia colocou para andar uma proposta que altera a Constituição e pode tornar mais rígida a legislação sobre interrupção de gravidez. O presidente da Câmara criticou a decisão do STF e disse que fará o mesmo sempre que o Supremo “legislar”:

— Do meu ponto de vista, toda vez que nós entendêssemos que o Supremo legisla no lugar da Câmara dos Deputados, do Congresso Nacional, deveríamos responder ou ratificando ou retificando a decisão do Supremo, como a de hoje (ontem).

Maia pediu aos líderes que indiquem logo os integrantes do colegiado para que possa iniciar seu funcionamento. Formalmente, a comissão especial irá analisar uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que trata sobre licença-maternidade no caso de bebês prematuros, mas a intenção dos deputados é explicitar no texto que o aborto deve ser considerado crime a qualquer tempo da gestação.

No total, o colegiado terá 34 membros titulares e igual número de suplentes. Segundo Maia, o objetivo é que a comissão aprove um parecer em até 11 sessões (prazo mínimo) para que o texto seja, em seguida, apreciado pelo plenário — onde precisa de no mínimo 308 votos favoráveis em dois turnos de votação para ser aprovado e ir para o Senado.

— O STF rasgou a Constituição e tomou para si uma tarefa que é dos congressistas, sem consultar ninguém. O objetivo com a comissão é mesmo reverter essa decisão absurda do STF. E temos votos para derrubar no plenário, onde contamos com a presença de 300 deputados pró-vida — disse Diego Garcia (PHS-PR), relator do Estatuto da Família.

A decisão de terça-feira da Primeira Turma do Supremo se aplica apenas ao caso dos médicos e funcionários de uma clínica de aborto presos em Xerém, Baixada Fluminense, mas abre um precedente inédito no STF sobre a questão. Dois ministros acompanharam o voto do ministro Luís Roberto Barroso, em que ele afirma que a criminalização do aborto nos três primeiros meses de gravidez viola direitos fundamentais da mulher. Barroso não quis comentar ontem a reação dos deputados.

Já o presidente do Senado, Renan Calheiros (PMDB-AL) — que costuma criticar decisões do Supremo que esbarram em matérias de caráter legislativo — adotou tom diferente e defendeu a decisão do STF sobre aborto. O senador indicou não apoiar a intenção do colega que comanda a Câmara de revisar o entendimento da Primeira Turma.

— Quando o Congresso tem dificuldade para deliberar sobre tema complexo, não acho ruim que o Supremo delibere. Não pode deliberar quando claramente o Legislativo quer decidir sobre a questão. Mas quando o Legislativo tem dificuldade, você não pode contestar uma interpretação do Supremo. Não sou contra que o Supremo interprete a lei. Democracia é isso — disse Renan.

 

CRÍTICAS DE FEMINISTAS

A reação da Câmara também foi alvo de duras críticas de organizações de defesa dos direitos das mulheres, que veem a decisão do Supremo como um grande avanço no debate sobre o aborto e a laicidade do Estado no Brasil.

— A decisão do Supremo foi muito importante principalmente pela linha de argumentação adotada, baseada na autonomia das mulheres sobre o próprio corpo, uma premissa do movimento feminista — aponta Carmen Sílvia Maria da Silva, doutora em sociologia e integrante do coletivo feminista SOS Corpo, no Recife. — Já a manobra da madrugada na Câmara corre o risco não só de deslegitimar a decisão do Supremo como colocar em debate e votação projetos contra os direitos das mulheres em um plenário controlado por uma frente política fundamentalista religiosa.

Professora da Universidade de Brasília, a cientista social Tânia Mara Campos, por sua vez, classificou a criação da comissão um “absurdo”.

— Nossa Câmara devia estar mais afinada com as demandas da sociedade, mas infelizmente ela está dominada por representantes do conservadorismo patriarcal que visa o controle das mulheres — diz. — Esta decisão é uma manobra do conservadorismo para continuar a negar às mulheres seus direitos individuais e atravancar as discussões do tema.

Por fim, a advogada criminalista Maria Luiza Gorga, especializada em direito médico, não tem dúvidas sobre a inconstitucionalidade da reação.

— Tenho convicção de que a atitude de Maia é completamente inconstitucional. A Constituição permite que o STF se coloque sobre todos os assuntos, ele pode ter esse papel mais ativo. Por outro lado, a Constituição não permite que o Legislativo discuta algo decidido pelo STF — destaca ela. — O legislador não pode retroceder sobre um direito já concedido. Isso até seria possível num Estado parlamentarista, mas este não é o nosso caso.

Segundo Maria Luiza, o único modo pelo qual a decisão do STF pode ser revogada é por meio de uma emenda constitucional que permita ao Legislativo desfazer decisões da corte.

— Isto, porém, cria a imagem de um Legislativo que não se importa com a Constituição. É, sem dúvida, um terreno perigoso — pontua.

De acordo com pesquisa divulgada ontem pela empresa Opinion Box que ouviu 1.814 pessoas, 29% delas conhecem alguém que já fez aborto ilegal. Quando questionadas sobre a legislação, 34% afirmam não conhecer a lei sobre aborto no Brasil.

 

 

O globo, n. 30432, 01/12/2016. Sociedade, p. 33.